miércoles, 23 de junio de 2010

Memória Social I. Mozart: sociologia de um gênio. Norbert Elias

Grupo: André Monteiro, Bianca Leão, Josué Carvalho e Vitor Rebello

Um breve registro da trajetória de Norbert Elias

Norbert Elias nasceu em Breslau, Alemanha, em 22 de junho de 1897, filho de Hermann Elias e Sophie Elias. Em 1915 participou das mobilizações para a 1ª guerra, integrando o front ocidental. Iniciou os estudos de medicina e filosofia em Breslau no ano de 1918, freqüentando dois semestres em Heidelberg e Freiburg, respectivamente. Defendeu sua tese de filosofia em 1924 e no ano seguinte foi morar em Heidelberg, ingressando na carreira universitária, onde encontra Karl Manheim e passa a se dedicar ao estudo da sociologia, até que 1930 tornar-se seu assistente em Frankfurt.
Com a ascensão do nazismo deixa a Alemanha em 1934 e tenta encontrar um posto numa universidade da Suíça, depois na França. Foi para a Inglaterra em 1935, ano em que começou a redação do livro O Processo Civilizador. Com alguns intervalos em outros países, viveu neste país até 1975, onde foi professor no Adult Education Center e na Universidade de Leicester. Além da Inglaterra, foi professor de Sociologia na Universidade de Gana, perto de Accra, entre 1962 e 1964 e, depois deste período, foi professor convidado na Holanda (Amsterdã, Haia) e na Alemanha (Münster, Constanz, Aix-la-Chapelle, Frankfurt, Bochum, Bielefeld). Depois de 1975, passa a dividir sua vida entre Amsterdã e o Centro de Pesquisas Interdisciplinares (ZIF) de Bielefeld. Em 1977 recebe o prêmio Adorno da cidade de Frankfurt pelo conjunto de sua obra. A partir de 1984 passa a viver definitivamente em Amsterdã, onde morre em 1990.

A obra sociológica

Um dos aspectos marcantes do conjunto da obra de Norbert Elias é organicidade teórica, tendo como uma de suas principais bases a análise da dinâmica entre indivíduo e sociedade, buscando ir além das perspectivas fragmentadas sobre a condição humana, que enfatizam aspectos particulares da vida, tais como ideias, valores, normas, modo de produção, ou mesmo instintos e sentimentos e sua sublimação. O autor desenvolveu alguns conceitos importantes para as ciências sociais, tais como o de configuração, que reporta a idéia de que a ação de um indivíduo está inserida numa rede de ações e reações, como também de habitus, que se refere aos elementos que caracterizam o comportamento em uma sociedade. Os trabalhos fundadores destas análises na trajetória acadêmica de Norbert Elias foram A Sociedade de Corte e O Processo Civilizador I e II que, segundo Roger Chartier, são obras complementares.

Algumas de suas principais obras:
O processo Civilizador I e II (1939)
Os Estabelecidos e os Outsiders (1965) A Sociedade de Corte (1969) Introdução a Sociologia (1978) Sociologia do Conhecimento (1982) Envolvimento e Alienação (1983) Sobre o Tempo (1984) A Condição Humana (1985) Em Busca da Excitação (1986) A Sociedade dos Indivíduos (1987) A Teoria do Símbolo (1991) Mozart: A Sociologia de um Gênio (1991)

O processo civilizador
Exatamente pela organicidade da obra de Norbert Elias é que se torna importante compreender alguns elementos de suas abordagens e conceitos para uma melhor compreensão do livro Mozart: a sociologia de um gênio.
O autor constrói uma análise profunda sobre o processo de longa duração da “curialização” da elite da sociedade francesa entre os séculos XI e XVII, ou seja, a trajetória de transformação da nobreza feudal para a nobreza de corte. Isso remonta ao ordenamento social que se constitui a partir das interações da sociedade romana, após o declínio de seu império, com os diversos povos europeus considerados bárbaros pelos romanos. Em tais grupos estavam fortemente presente os aspectos tribais, estruturados em função do clã e da família.
O contexto feudal da Idade Média forma-se a partir desta interação, dando origem a uma sociedade fundamentalmente organizada em três ordens com funções definidas: o Clero, que se ocupava da mediação com o sagrado na perspectiva cristã; a Nobreza, dedicada aos ofícios relacionados à guerra; e a Plebe, destinada aos trabalhos predominantemente relacionados à agricultura e à manufatura. As relações de poder se caracterizavam pela figura do rei sem poder, vinculado a senhores feudais por códigos de vassalagem, que instituía as formas de alianças entre estes grupos.
Com a expansão do comércio e o desenvolvimento da classe burguesa, inicia-se uma longa trajetória de reorganização das relações sociais e da constituição dos Estados-Nação, através da unificação do poder em torno da figura do rei. Era necessário que este passasse a deter o monopólio fiscal e militar, e que fosse atribuído novos espaços e sentidos para a nobreza feudal em uma corte hierarquizada. Assim, o processo de adequação deste grupo social é marcado pela etiqueta da corte.

A etiqueta da corte e o processo de individualização
O processo de condicionamento e transformação da nobreza guerreira em nobreza de corte implicava em novos vínculos associados a um Estado centralizado na figura do rei, que exigia novos ritos da política, novas funções e de comportamentos extremamente regulados por regras de etiqueta que traziam a representação do modelo de hierarquia social. Isto implicava em um alto grau de contenção de afetos, instintos e pulsões, como também a estruturação do comportamento pessoal adequados às máscaras sociais, como uma alegoria das distinções nesta sociedade.
Estas “coerções das paixões” vivenciadas pelas elites cortesães vão contribuir para a formação de uma autoconsciência, com base no “distanciamento do homem da natureza, dos outros homens e de si mesmo” (VIEIRA, 2003). Assim, através desta “economia dos afetos”, o indivíduo passa a distinguir-se socialmente a partir de suas ações. É na constituição deste novo habitus que surge a imagem do artista de uma maneira mais próxima ao que é concebida na atualidade.

Arte e a corte
Nesta sociedade marcada pelo autocontrole, a arte se torna o espaço de vazão das paixões e dos impulsos contidos, como uma fuga para um mundo de sonhos, onde há uma nostalgia por parte desta nobreza de um passado bucólico, de pureza e liberdade. Desta forma, a figura do artista traz uma ambígua representação nesta sociedade: por um lado tornavam-se catalisadores desta “economia de afetos”, contribuindo para a sublimação dos conflitos gerados pelos distanciamentos do autocontrole, que fomentava uma imagem “redentora” dos mesmos; por outro, sua condição na sociedade de corte não lhe atribuía prestígio, mas sim deveres como qualquer serviçal a disposição das necessidades – no caso, artísticas – de seus patronos.
Neste período, o valor do virtuosismo de um músico ou o que atualmente concebemos como genialidade, era visto como um dom natural que tomava posse do artista, fazendo dele um instrumento a serviço da natureza, da razão, da arte ou mesmo de um patrono. Posteriormente, com a consolidação dos valores burgueses, a genialidade se torna um atributo de capacidades pessoais.

Músicos Burgueses na Sociedade de Corte – Os paradoxos na configuração do indivíduo do século XVIII
O livro Mozart, sociologia de um gênio está baseado em um contexto de transição histórica, onde Norbert Elias se alicerça nos processos dos dados sociais observáveis. Elias situa a vida de Amadeus Mozart em “em um período que surge da dinâmica do conflito entre os padrões de classes mais antigas, em decadência, e os de outras, mais novas, em ascensão” (1995: 15), onde mais que uma biografia, seu trabalho é um estudo de trajetória de um artista.
Vale observarmos que Elias pensa neste contexto como um conflito de padrões. Conflito este que ia para além do embate entre os valores e ideais das classes aristocráticas da corte e dos estratos burgueses. O sociólogo não reduz sua análise às questões meramente sociais, mas do reflexo dessas questões no interior do próprio indivíduo. Para o autor, a questão principal estava em como, para o indivíduo, este conflito perpassava toda sua existência social.
Em seu texto, Elias utiliza os conceitos de establishment e outsider, fazendo uma nítida distinção entre os grupos de outsiders burgueses e o establishment cortesão como grupos em uma arena política de conflitos. Porém, uma questão que deve ser ressaltada em sua análise é que, para o sociólogo, a cultura era uma arena politicamente menos perigosa e Amadeus Mozart lutou contra o poder estabelecido de uma sociedade do patronato utilizando sua própria música em prol de sua dignidade pessoal. Elias chama a atenção para o lugar comum das reificações das categorizações sociais referentes às mudanças sociais da segunda metade do séc. XVIII, quando da derrota da nobreza feudal já solapada pela mudança econômica da Revolução Francesa.
Os problemas observáveis dos seres humanos são categorizados por conceitos de classes rebaixados a clichês, como “nobreza”, “burguesia”, “feudalismo” e “capitalismo”. Categorias como estas bloqueiam o acesso a uma maior compreensão do desenvolvimento da música e da arte em geral. Esta só é possível se a discussão não se restringir aos processos econômicos ou aos desenvolvimentos da música, e se, ao mesmo tempo, for feita uma tentativa de iluminar o destino das pessoas que produziram música e outras obras de arte no interior de uma estrutura social em transformação (1995: 28).
As palavras “civilização” e “cultura”, neste período, foram utilizadas pela cultura germânica como símbolos de padrões diferentes de comportamento e sentimento. Em uma clara tensão entre os círculos do establishment cortesão e os grupos de burgueses outsiders. Isso chegou ao ápice no fim do século XX com a ascensão das duas classes econômicas das classes média e da aristocracia. Ele cita a fusão dos interesses entre burgueses e nobres, porque é resultante justamente desse jogo, assim como foi terreno fértil para as diferenciações entre o absolutismo aristocrático e o absolutismo burguês e proletário.
Sempre articulando o indivíduo e sua relação com seu meio, Elias aponta para a “vida paradigmática de Mozart” e chama a atenção para:
O destino de um burguês a serviço da corte no final do período quando, em quase toda a Europa, o gosto da nobreza de corte estabelecia o padrão para os artistas de todas as origens sociais, acompanhando a distribuição geral de poder. Isto se aplicava especialmente à música e à arquitetura (1995: 27).
De acordo com Elias, que ressalta as diferenças entre essas especializações no campo da arte, a Literatura e a Filosofia conquistaram maior liberdade de produção através das publicações de livros, porque já havia na Alemanha (na segunda metade do séc. XVIII) um público leitor grande e crescente em meio à burguesia alemã deste período. Já a música, ainda era subserviente ao patronato das cortes, principalmente de Viena. Novamente vale destacar que além do círculo restrito da corte, haviam os círculos aristocráticos e da burguesia urbana em formação que seguia os modelos preconizados pela corte.
Cabe neste momento fazermos referência às mudanças sociais ocorridas na segunda metade do séc. XIX no contexto sociológico brasileiro que foi, por sua vez, resultante de um processo de modernização tardia. Os difíceis processos de ascensão social enfrentados por personagens importantes deste cenário de transição, como Euclides da Cunha, são um exemplo dos ecos da chamada sociedade de corte (como cunhou Elias), no caso a brasileira, que era o modelo em que predominava a chamada “aristocracia de berço” 1. Como cita a autora Regina Abreu:
1 Apud, Celso Castro. In ABREU, Regina. O Enigma dos Sertões.
O acesso aos postos mais elevados nas carreiras mais importantes era determinado pelo capital social herdado, impossibilitando que indivíduos, mesmo talentosos e tecnicamente preparados, mas com poucos recursos econômicos e desprovidos de capital familiar, pudessem atingi-los (1998: 67).
Para Norbert Elias não havia escolha para Mozart. De acordo com o autor, o músico, quer como instrumentista, quer como compositor, tinha que se submeter aos padrões da corte, de preferência uma corte rica e esplêndida. O exemplo de Salieri, evidenciado no filme Amadeus, compõe bem esta imagem. Filho de comerciantes, burgueses, conquista um cargo na corte de Viena, mas se mantém como um compositor de um “estilo” contido, digamos assim.
Elias salienta que, mesmo nos países protestantes, em que um músico poderia ocupar posições como organista de igreja em uma das cidades grandes e semi-autônomas, ele deveria preferencialmente já ter ocupado um cargo similar numa corte. Na sociedade de corte o status de um músico era o mesmo de um cozinheiro ou pasteleiro. Todos tinham que, obrigatoriamente, estar cientes de suas posições subalternas sem serem escravos. Estes funcionários eram pejorativamente chamados de “criados de librè”. O pai de Mozart, mesmo não satisfeito com sua posição social, se submeteu a esta estrutura.
Esta era a estrutura fixa em cujo interior cada talento musical individual tinha de se manifestar. Não é possível compreender a música daquela época, seu “estilo”, como muitas vezes se diz, sem ter em mente, de maneira clara, tal estrutura (ELIAS, 1995: 18).
Elias mantém em Mozart, sociologia de um gênio uma postura crítica a um aspecto que as biografias recorrem correntemente. Da falta de um olhar sociológico sobre o indivíduo, não importa quão incomparáveis sejam suas realizações pessoais. Mesmo que aquele indivíduo seja único em sua existência.
É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo teórico verificável da configuração que uma pessoa – nesse caso um artista do séc. XVIII- formava, em sua interdependência com outras figuras sociais da época (1995:18).
Fica claro o elogio de Elias à Sociologia. Ele apresenta um modelo das estruturas sociais da época e a questão das diferenças de poder. Esta leitura nos remete ao estudo dos campos subterrâneos de poder de Pierre Bourdieu, onde o indivíduo, segundo o teórico francês, de certa forma sabe “até onde pode ir” na esfera social em que se insere; qual o seu campo de ação.
Só dentro da estrutura de tal modelo é que se pode discernir o que uma pessoa como Mozart, envolvida por tal sociedade, era capaz de fazer, enquanto indivíduo, e o que- não importa sua força, grandeza ou singularidade - não era capaz de fazer. Só então, em suma, é possível entender as coerções inevitáveis que agiam sobre Mozart e como ele se comportou em relação a elas - se cedeu a sua pressão e foi assim influenciado em sua produção musical, ou se tentou escapar ou mesmo se opor a elas (1995: 19).
Os músicos em sua maioria vinham de origem burguesa e por isso tinham que se adequar aos padrões da corte, ao chamado establishment da corte, ao seu comportamento, sentimento, vestuário, modos etc. Hoje em dia, essa adequação ao establishment é dada como óbvia. Elias cita o exemplo dos empregados de uma grande loja de departamentos que, para ascender na empresa, aprendem a se adequar à sua estrutura:
Mas em sociedades onde há um mercado razoavelmente livre de oferta e demanda e, mesmo em algumas áreas, de empregos para profissionais, a diferenças de poder entre o establishment econômico e os outsiders é muito menor que entre governantes absolutistas ou seus conselheiros e os músicos de sua corte – muito embora os artistas famosos e à la mode pudessem tomar certas liberdades (1995: 20).
O que Elias quer dizer é que havia uma nobreza de corte e uma burguesia de corte e compara o cargo de regente-substituto do pai de Mozart à dos empregados de uma empresa privada do sec. XIX. Mozart, assim como seu pai, foi um burguês de corte. A questão é que os sinais de subordinação eram mais evidentes dados os gestos de superioridade por parte dos governantes, tidos por naturais. Mozart vivia em dois mundos e teve que aprender “onde era o seu lugar”.
Na corte, a distância social era imensa, mas a distância espacial, muito pequena. As pessoas estavam sempre juntas, o senhor estava sempre ali. (...) Por um lado ele (Mozart) se movia em círculos da aristocracia de corte, cujo gosto musical adotou e cujo padrão de comportamento deveria seguir. Por outro, ele representava um tipo específico daquilo que somos obrigados a designar, através de um termo extremamente precário, “a pequena burguesia de sua época” (1995: 21).
Mozart, mesmo educado para se enquadrar aos padrões comportamentais de sua esfera social, não se adequou aos padrões comportamentais do homem de corte. Era rude, um bufão. Sabia que possuía um enorme talento e isso o fazia se sentir igual ou mesmo superior aos nobres. O músico, de acordo com Elias, representava a figura do gênio que ainda não tinha se configurado na sociedade de corte do século XVIII.
A ideia romântica de gênio, um enviado por Deus, um ser dotado de poderes divinos que manifesta a divindade pela obra de arte está associada à valorização do indivíduo. Elias assim define Mozart:
Era, numa palavra, um gênio, um ser humano excepcionalmente dotado, nascido numa sociedade que ainda não conhecia o conceito romântico de gênio, e cujo padrão social não permitia que em seu meio houvesse qualquer lugar legítimo para um artista de gênio altamente individualizado (1995: 23).
Esta, segundo Elias, é a chave de entendimento da situação de Mozart. Um gênio que viveu em uma sociedade em que o processo de individualização do sujeito está se configurando como um projeto ambivalente. E Mozart vivia nesta ambivalência do artista burguês na sociedade de corte, onde havia uma identificação com a nobreza da corte e seu gosto e também havia o “ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha” (1995: 24)
Mozart se torna um artista autônomo
Na Alemanha do século XVIII, existia uma espécie de mercado livre para os produtores literários, em conexão com a proliferação de pequenos Estados. Havia ,ou menos especializados, ligados a impressão, distribuição e venda de obras literárias. Crescia o público burguês instruído e interessado em livros alemães, muitas vezes em deliberado contraste com a nobreza de corte, basicamente interessada na época em escritos franceses. Dessa forma surgiu no século XVIII a figura social do escritor autônomo, de modo apenas experimental, pois ainda era muito difícil para um profissional manter-se e a sua família sem a ajuda de algum patrono nobre.
A decisão de Mozart de largar o emprego em Salzburgo se deu pelo motivo de não suportar mais a ideia de ser um empregado permanente de um patrono. Mozart desejava ganhar a vida como artista autônomo, vendendo seu talento como músico e suas obras neste mercado livre emergente. No entanto, conforme explicitado anteriormente, esta decisão ocorreu em uma época em que as estruturas sociais ainda não ofereciam tal lugar para músicos ilustres. O mercado da música e suas instituições correspondentes estavam apenas surgindo. A organização de concertos para um público pagante e as atividades editoriais de venda de músicas de compositores conhecidos, mediante adiantamentos, se encontrava na melhor das hipóteses, em seus estágios iniciais. Especificamente, faltavam ainda em grande parte as instituições necessárias para que o mercado ultrapassasse o nível local, sobretudo na Áustria e em nas outras cortes alemãs, onde a grande maioria dos concertos eram óperas – gênero preferido por Mozart – destinadas às elites.
Elias afirma serem as ideias de Mozart não muito precisas quanto ao seu futuro. A situação em Salzburgo tornara-se insustentável, o lado negativo estava bem claro para ele. No entanto, para entender sua personalidade e sua real situação frente à sociedade é importante imaginar como ele se sentia. Seu empregador determinava quando e onde deveriam ser feitos seus concertos e, muitas vezes, quais deveriam ser suas composições. Provavelmente eram estes os termos usuais de um contrato de trabalho. Aceitando as condições de seu ofício, todos os músicos profissionais com empregos permanentes viviam exatamente como ouvires ou pintores, sob restrições que Mozart já não tolerava. Ele tinha conhecimento do seu talento e acreditava que através dele poderia tornar-se senhor de sua própria obra e ser reconhecido como tal. Mas é importante esclarecer que este reconhecimento se restringia apenas a sociedade de corte.
Segundo Elias, decisivo mesmo para a vida de Mozart foi ter apostado em seus próprios objetivos e anseios pessoais. Acreditando sempre em sua opinião sobre o que fazia ou não sentido, ele antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista. Institucionalmente a situação que prevalecia em sua época era do artista assalariado, oficial. Mas a estrutura de sua personalidade era de alguém que desejava, acima de tudo, seguir sua própria imaginação, numa época em que a composição e a execução da musica mais valorizada pela sociedade repousava exclusivamente nas mãos de músicos artesãos com postos permanentes, sejam eles nas cortes ou nas igrejas das cidades.
Elias também afirma que por alguns anos o sucesso esperado por Mozart realmente se materializou Contudo, este sucesso não durou muito, visto que a sociedade estava acostumada a ouvir e dar valor ao que a corte ouvia e tudo o que não se encaixasse nos padrões estabelecidos por essa corte era afastado. É possível perceber também a peculiaridade do mercado que Mozart tinha a sua disposição. Mesmo como artista autônomo, ele ainda dependia, como qualquer “artista-artesão”, de um limitado circulo local de clientes extremamente fechado e fortemente integrado. Se corresse o
rumor de que o imperador não tinha um músico especialmente em conta, a boa sociedade simplesmente o deixava de lado.
Mozart tinha colocado ao tornar-se artista autônomo, toda a sua esperança de êxito no público vienense, na opinião publica da alta sociedade da capital austríaca. Para Elias, esse foi claramente um dos maiores desejos de sua vida e uma das mais importantes razões para sua tragédia.
A tradição biográfica europeia, uma “intelectual desumanidade”
Uma das inquietações levantadas por Norbert Elias que vale a pena ser discutida diz respeito à dissociação do artista e do ser humano realizada pelos biógrafos de Mozart. A partir da leitura de algumas biografias sobre a vida do músico, Elias percebeu que é bastante comum a vinculação da ideia de que a “maturação” do talento do artista desenvolve-se de maneira independente ao próprio artista, gerando suposições absurdas, como a de que Mozart não entendia a si mesmo. Outra noção comum criticada pelo sociólogo é a de que a criação de grandes obras de arte não depende da existência social do seu autor. Os biógrafos supõem que compreendê-lo como artista não implica necessariamente em compreendê-lo como homem. Esta separação tende sempre a ser artificial, enganadora e desnecessária.
Segundo Elias, a imagem idealizante de gênio a que foi elevado Mozart em períodos posteriores a sua morte sempre ofuscou o seu intenso esforço em aprender e reinventar a linguagem musical. É impossível compreender Mozart – tanto o artista quanto o ser humano – sem entender sua história de vida.2 A rígida educação musical imposta por seu pai, as incansáveis viagens pelas cortes européias durante sua juventude, o surpreendente amadurecimento do seu talento musical dos tempos de menino prodígio até tornar-se um dos maiores artistas do continente, e mesmo suas atitudes conflitantes com relação à posição do artista na sociedade de corte. Tudo isto é ignorado a partir do momento em que Mozart é tratado conforme a visão romantizada de gênio – que acredita ter os artistas um dom especial, uma capacidade criativa inspirada por leis divinas ou por forças naturais. Para Elias, ignorar as dificuldades da vida do músico é uma visão excessivamente estreita, um tanto áspera, “uma intelectual desumanidade” (2009: 54).
Entender o artista no ser humano
Desta forma, esta relação entre o “homem” e o “artista” tem sido especialmente desconcertante para muitos estudiosos, principalmente porque a personalidade de Mozart combinava mal com o ideal preconcebido de gênio. O músico era um homem simples, extremamente vulgar, muitas vezes infantil. Sentia grande necessidade de amor desde sua tenra idade. A questão é como alguém tão fora dos padrões foi capaz de produzir composições tão sublimes, profundas, sensíveis e misteriosas. A visão da dicotomia romântica, renovada pelo conflito entre civilizados e sua animalidade, jamais resolvida até hoje, nunca foi capaz de dar conta da complexa figura de Mozart.
2 Neste ponto faz-se necessário lembrar a posição de Bourdieu sobre esta temática. Segundo o sociólogo francês, falar em uma história de vida implica em supor que a vida é uma história, e que esta conduz à noção de trajetória. “Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos (...) é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações” (2001: 189).
Elias é enfático ao afirmar que entender o artista no ser humano, ou seja, esclarecer as conexões entre a experiência e o destino do artista é importante para a compreensão de nós mesmos enquanto seres humanos. A autonomia das obras de arte e o complexo de problemas a ela associados não nos eximem da obrigação de investigar esta conexão. Saber que um artista possuiu tantos problemas e que mesmo assim foi capaz de compor obras sublimes, como a ópera Don Giovanni, é importante para “descanonizar” a figura do gênio frente à sua sociedade.
Expressões como “gênio inato” ou “capacidade congênita de compor” não exprimem a realidade de Mozart. Ao dizermos que certa característica da pessoa é inata estamos dizendo que ela é herdada biologicamente da mesma maneira que os olhos, o cabelo e o tom de pele. No entanto, não faz sentido considerar que alguém pode herdar essa propensão natural, geneticamente enraizada, de fazer algo tão artificial como a música. A consciência, qualquer que seja sua forma específica, não é inata a ninguém. No máximo, o potencial para formar uma consciência é um dote humano natural. Ninguém pode ter a menor dúvida de que, desde criança, Mozart mostrou uma capacidade extremamente forte de transformar suas energias instintivas através da sublimação, como afirma Elias: “Suas energias foram concentradas, desde muito cedo, em processos específicos de sublimação, em expandir áreas especializadas de consciência e de conhecimento, que ampliaram seu fluxo de fantasias instintivas em vez de se opor a ele” (2009: 83). Porém, não podemos nos esquecer que entre os fatores que claramente influenciam o processo de sublimação estão a extensão e a direção da sublimação nos pais da criança. Leopold Mozart, o pai, era um músico de corte com acentuada tendência pedagógica. Nao restam dúvidas de que a dedicação que Mozart, filho, oferecia à música foi herdada por seu pai. Mas não por motivos biológicos, e sim, por questões ligadas a exigente educação imposta ao grande músico precocemente. Como afirma Elias “O pai era um perfeccionista pedagógico (...). O filho era um músico perfeccionista” (2009: 85).
Acreditamos que para este término do trabalho, o mais interessante é relembrar os motivos que levaram Elias a escrever esta obra sobre a vida de Mozart. De acordo com o sociólogo, entre as mais interessantes perguntas não respondidas de nosso tempo está a que indaga quais características estruturais fazem com que determinadas obras, determinados artistas, sobrevivam ao processo de seleção de uma série de gerações, sendo gradualmente absorvidas no padrão de obras de arte socialmente aceitas – como é o caso de Mozart – enquanto outras pessoas caem no ostracismo. Esta não é uma questão respondida por Norbert Elias em Mozart, sociologia de um gênio, mas sem dúvida, é constantemente interrogada.

Referências bibliográficas:

ABREU, Regina. O Enigma dos Sertões. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998.
BARIANI , Edison . Indivíduo, sociedade e genialidade: Norbert Elias e o caso Mozart. Revista Urutágua (Online), Maringá-PR, v. 8, p. 1-1, 2005. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/008/08soc_bariani.pdf. Acessado em: 30/05/2010.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 4ª edição.
________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CHARTIER, Roger. “Formação social e habitus: Uma leitura de Norbert Elias”. In: A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995.
VIEIRA, Mariella Pitombo. A arte, o artista e o processo civilizador. Anais eletrônicos do V Simpósio de Filosofia e Ciência. UNESP Marília Publicações, 2003. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/Artigos/Mariellaarte.pdf. Acessado em: 30/05/2010.

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