domingo, 23 de mayo de 2010

Memória Social 1, Walter Benjamin, Sistematização da Vida e obra do autor

Walter Benjamin – Sistematização da vida e obra do autor
Myrna Amaral Catinin
Gyl Giffony Araújo Moura
Luis César

1) CONTEXTUALIZAÇÃO E INFLUÊNCIAS TEÓRICAS

Walter Benjamin foi um ensaísta, filósofo, tradutor, crítico literário e cidadão de intensas atividades políticas e culturais. Judeu nascido em 1892, Benjamin vivenciou duas guerras mundiais, recessão econômica e ascensão dos regimes totalitários; afetado profundamente por estes últimos, suicidou em 1940.
Um dos nomes mais conhecidos da Escola de Frankfurt, apesar de controvérsias quanto a sua participação não oficial na referida instituição, que buscava uma reinterpretação do marxismo, não mais partindo da estrutura (economia), mas privilegiando em suas análises a relação da infra-estrutura (relações de produção) com a super-estrutura (as artes e a ideologia). Compreende-se daí o tão grande interesse da Escola pela postulação da estética como o lugar principal de exercício de sua Teoria Crítica Social. Visto isso, já podemos considerar Benjamin mais do que um crítico de arte, entendendo que seus escritos estavam articulados com um posicionamento acadêmico- político de compreensão de mundo. Identificamos três perspectivas que exerceram grande influência no pensamento benjaminiano: o romantismo alemão1, o messianismo judeu e o marxismo. Não há uma combinatória ou síntese entre essas perspectivas, mas invenção, a partir delas, de uma nova concepção profundamente singular. Os escritos de Benjamin são perpassados por uma perspectiva negativista, pois descreve-se – de maneira literária e quase épica – a morte das coisas no mundo da ciência e da técnica. O narrador, a experiência, a aura e até mesmo a revolução são descritas sob o ponto de vista dos vencidos, que é um posicionamento político característico do autor ante a história tradicional, escrevendo epopéia dos conquistadores.
Um conceito que vale destacar é o de materialismo histórico, que foi até ponto de dissidência entre Benjamin e a Escola de Frankfurt, pois o autor combate a idéia de progresso que é inerente ao conceito. Para Benjamin a revolução não será um resultado natural ou inevitável do progresso econômico, mas, sim, uma interrupção de uma evolução histórica que conduz à catástrofe.

2) SOBRE O NARRADOR E A EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA EM WALTER BENJAMIN
Benjamin apresenta em "O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov" tanto a origem da narrativa quanto sua decadência a partir da intensificação do romance através da imprensa, bem como das relações fundamentais entre a experiência e a memória. O autor em questão parte da observação de que as ações da experiência estão em baixa, o que naturalmente ocasiona a derrocada da narrativa. A experiência que perpassa as pessoas é o objeto recorrente do narrador.
A narrativa tem dois grupos interpenetrantes em sua origem. De um lado, aquele que vem de longe, na figura do marinheiro viajante; de outro, aquele que permaneceu em sua terra, com suas ações da experiência honesta na expressão do camponês sedentário. Entretanto, foram os artífices que aperfeiçoaram a arte da narrativa.
O senso prático pela utilidade moral da narrativa definhou na medida em que a dimensão do conselho dado perdeu o seu sentido. As experiências tornaram-se incomunicáveis. E o motivo de tal incomunicabilidade encontra-se na “evolução secular das forças produtivas”. A narrativa cedeu forçosamente o lugar privilegiado ao romance. Este, por sua vez, teve seus primórdios antes mesmo da ascensão da burguesia e da invenção da imprensa. Entretanto, somente tomou uma dimensão superlativa, ao mesmo tempo, deprimente da condição humana e da narrativa, quando seu encaixe com a individualidade secular e a burguesia se efetivou na modernidade.
Ao passo que a narrativa tem um vínculo arcaico (original) com a poesia épica pelos laços arremessados de pessoa a pessoa, por sua peculiar extensão através das experiências transmitidas, o romance encontrou seu lugar de acomodação no escritor e no leitor, individualizados e separados. A experiência perdeu seu sentido arcaico quando o romance desvinculou a existência da sabedoria transmitida. O escritor do romance não cunhou com a sabedoria da experiência vivida a sua obra, mas satisfez seu isolamento e cedeu um motivo para o isolamento do leitor.
A desvinculação provocada pelo romance neste período moderno foi insuficiente para a própria estirpe individualista da burguesia. A informação tomou o status da objetividade e da extrema ausência de vínculos entre as experiências e as pessoas. Não só os conselhos se perderam, mas o que havia de mais comum entre a experiência e a vida. O desafeto da informação não só declinou a experiência a um lugar ínfimo, mas a despojou daquilo que a tornava excepcionalmente importante: sua validade entre prazer de narrar e a satisfação livre de ouvir e interpretar, ou seja, de fazer experiência novamente.
Remontando à poesia épica, pode-se observar que quando Homero e Hesíodo marcaram a humanidade, não foi por suas verdades, mas pelos valores e sentidos que deram à existência humana através da glória dos heróis e dos afetos dos deuses; não só aproximaram os homens de suas experiências, mas demonstraram os afetos dos deuses. A diferença fundamental da informação para a poesia épica está justamente no afeto que caracteriza a alteração notória entre ativo e passivo. A informação cunha personalidade, desejo, caráter, mas do modo favorável da produtividade e do consumo capitalistas, dissociando a sabedoria da experiência. A informação não exige uma memória da vivência, transformando a existência humana com o afeto, mas causando o desafeto. Tanto mais informações, quanto menos vínculos existem entre a vida e a experiência. O exagero da produção é uma exigência da demasia de informações. Quanto mais informações estagnadas, menos o homem é capaz de uma memória que seja ativa e livre para vincular seu desejo com sua experiência. Ao contrário, a arcaica maneira narrativa de se referir à vivência humana é bem distante por não se poder hoje entender com facilidade que interpretar é importante quando não se tem as explicações prontas sobre os fatos. A gravidade das explicações as sobrepõe aos acontecimentos e às coisas de maneira a extinguir a liberdade do desejo da projeção que ouve ou lê.
Entender que Benjamin se refere à experiência com uma notória estima é “ouvir” algo próximo do que pode ser memorável ativamente, pois a transmissão veloz e desarticulada da informação com a interpretação livre não satisfaz outra realidade senão a da burguesia capitalista, em sua reação individualista e passiva. Benjamin não “narra” nesse texto sobre o narrador, mas faz a crítica da fugacidade da informação dissidente do romance.
O romance é a pretensão de fazer o vínculo com a possibilidade de um leitor satisfeito. Entretanto, esta satisfação está muito mais como acusativa de sua precariedade de experiência do que de seu salutar e almejado final feliz. Ao contrário daquele que ouve a narrativa, o passivo leitor do romance apenas imagina que sua estagnação pode ser despojada. Prova disso é que um livro se sobrepõe ao outro sem uma postura remissiva do leitor com sua própria condição de existência. Sempre precisará de outro livro para a mesma condição, estagnada e passiva submissão de uma individualidade viciada.
A narrativa extrapola o limite do cotidiano quando arremessa o ouvinte a outro lugar, mas o faz somente como exaltação memorável dos feitos, das experiências. E mais, faz circular um desejo de relação, distante do ostracismo de um leitor que apenas imagina fracamente a experiência e não a efetiva, não cria como a imagem trazida de longe.
A imagem alheia, trazida pelo narrador, não afasta o ouvinte, mas o instiga à criação quando é afetado por sua experiência de ouvinte que interpreta, que mistura sua experiência à narrativa. Neste sentido, a narrativa tem um ponto forte quando mantém o vínculo do que é memorizado com a experiência de quem narra e de quem ouve. Diferente do que é lido no romance, a imagem ouvida é fruto de uma memória que a recria a cada vez que restabeleceu os laços das experiências dos envolvidos.
Saber narrar, neste sentido, é refazer a imagem na medida em que se aceita o ouvinte como parte da própria narrativa. Algo que pode reafirmar tal conceito é a extensão da própria narrativa, que torna irrelevante até mesmo um dado individual como a morte, lançando ao prelo a experiência coletiva.
O próprio dom de narrar é a reverência que o narrador tem por sua vida inteira. Quando narra, não sobrepõe explicações de fatos, mas conta a sua vida inteira. E esta integralidade também é coletiva porque é assumida como criação da memória que interpreta com diferenças em cada nova experiência entre narrador e ouvinte.
Uma característica importante do narrador é a mobilidade entre o individual e o coletivo, quando exercita a memória da experiência e a recria com a novidade do que narra e deixa ouvir. O exemplo explícito disso é o aspecto vigoroso do conto de fadas. Ensinou a humanidade a dialética da coragem entre a astúcia e a arrogância para encarar o medo diante do mundo mítico. Por mais que o mito tenha sua validade cultural para uma época antiga, não se pode negar que foi assustador também. O conto de fadas foi uma maneira de confronto e uma tentativa de lidar com o extremamente outro, o demasiado assombroso do mito. No entanto, o que se faz evidente não é o modo de lidar com o outro, com a extremidade, mas a mobilidade com que se produz discurso sobre a experiência no seio da diferença.
Uma falsidade, no modelo da máscara e da fantasia, não deixa de ser válida quando é emersa como remédio para o combate e a remissão de uma dor. A questão aqui não está entre o que é verdadeiro ou falso na experiência, mas o que produz, reproduz e cria experiência. Seja ela um produto de um mascaramento para destituir uma situação insatisfatória, ou a reafirmação da experiência vivida, um jogo de medidas para libertar a totalidade, a vida inteira. Bem daquela maneira do justo que Benjamin salienta: que se encontra consigo mesmo quando descobre a totalidade de sua vida. E esta totalidade engloba o individual e o coletivo, em propensão à harmonia de contrários, diferente do escritor e do leitor do romance, que negam uma parte presente e sonham sem fertilidade com um final feliz.
A memória do narrador foi criadora através da experiência do já vivido com o que se vivia durante a narrativa. Entretanto, esta mesma experiência não é outra senão a que foi atrofiada com a modernidade e o seu excesso de produção sem profundidade, sem raízes naquilo que se vive. Do mesmo modo que Benjamin estimou Proust por fazer uma narrativa quando a experiência estava falida, com os instrumentos gráficos do romance, pode-se entender que o texto sobre o narrador tem validade como crítica da modernidade, ou da infertilidade do tempo moderno. Uma valorização da memória do tempo por Proust não seria outra coisa senão a recriação da experiência vivida. Deste modo, a busca do tempo perdido é a memória do que vem de longe, mas também é a experiência do “camponês sedentário”, que dispõe de tempo para viver a experiência. E viver significa aqui envolvimento, relação entre o individual e o coletivo, degustando a sabedoria do distante e do próximo.

3) O OLHAR BENJAMINIANO PARA HISTÓRIA
Perfazendo o movimento da obra de Walter Benjamin chegamos em 1940 a seu último trabalho: “Sobre o conceito de história”. Escrito póstumo, referente a uma fase mais crítica, o ensaio foca-se em questões acerca das abordagens históricas e suas relações com o materialismo histórico, o protagonismo da memória dos vencidos e a noção de progresso.
Iniciando seu texto com uma descrição alegórica de um jogo de xadrez, Benjamin aponta o historicismo de seu tempo como uma marionete manipulada pelo materialismo histórico; diretamente, o que almeja é mostrar o predomínio de reconstruções do passado ditadas por aqueles que vêem os acontecimentos como fruto das condições econômicas da sociedade. Indaga-nos a pensar sobre as reais intenções dessa História, a quem ela serve, a que se destina, o que pretende... Benjamin aplica ao materialismo histórico o papel de vilão, como aquele que, durante o enredo, tem como objetivo impedir o “encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa2”.
Logo após, fugindo de um fatalismo cruel e escuro, nos mostra que, dentre essa possessão das imagens do passado pelos vencidos e dominantes, há um pouco de luz. Seja no entre ou abaixo do discurso histórico empreendido pelo materialismo, os vencidos processam sua memória. Referindo-se ao pensamento benjaminiano, Myrian Sepúlveda dos Santos afirma que
Em suma, a história colocou a memória, lembrança do passado, a serviço dos colonizadores, mas a memória foi capaz também de preservar com ela as barbáries dos colonizadores no discurso que os legitima. Embora a memória não seja capaz de nomear as injustiças anteriormente cometidas, ela as traz em suas narrativas3.
Em suas “teses” sobre a história, o autor critica fortemente a concepção de progresso difundida pela social-democracia. Para Benjamin, em nome dessa tendência progressista concentrada principalmente na ciência e na tecnologia deteriorou-se a experiência e a rememoração, criando-se um “tempo vazio e homogêneo”.
Ele nos traz ainda a metáfora do quadro de Klee, Angelus Novus, assinalando que mesmo tendo conhecimento da totalidade, do conjunto das ocorrências do passado, a história de forma parcial e estratégica seleciona os acontecimentos que legitimam os vitoriosos e propaga-os, fortalecendo os dominantes e conformando os dominados. Mesmo ciente das memórias de todos, a história apega-se a poucas e poucos ao seguir sua marcha para o futuro, fixamente guiada pelo ideal de progresso.


4) GLOSSÁRIO:
Narrador – um artesão da comunicação; não está preocupado em transmitir o “puro em si”, mas mergulha a coisa na vida do narrador.
Experiência – diferente do termo vivência; tem relação com a transmissão e o compartilhamento com uma coletividade. Para Benjamin, a experiência não se constitui no momento que se vive, mas no momento em que se transmite.
Aura – autoridade da obra de arte tida como um objeto singular, e não somente uma representação; o que é autêntico; tem uma história única, logo há efeitos reais do tempo sobre a obra; tem uma função ritual, mesmo que secularizado.
Progresso – idéia contida na perspectiva histórico-marxista e que é criticada por Benjamin; traz a história e a revolução como algo disrruptivo e não progressivo.

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