miércoles, 23 de junio de 2010

Memória Social I. Mozart: sociologia de um gênio. Norbert Elias

Grupo: André Monteiro, Bianca Leão, Josué Carvalho e Vitor Rebello

Um breve registro da trajetória de Norbert Elias

Norbert Elias nasceu em Breslau, Alemanha, em 22 de junho de 1897, filho de Hermann Elias e Sophie Elias. Em 1915 participou das mobilizações para a 1ª guerra, integrando o front ocidental. Iniciou os estudos de medicina e filosofia em Breslau no ano de 1918, freqüentando dois semestres em Heidelberg e Freiburg, respectivamente. Defendeu sua tese de filosofia em 1924 e no ano seguinte foi morar em Heidelberg, ingressando na carreira universitária, onde encontra Karl Manheim e passa a se dedicar ao estudo da sociologia, até que 1930 tornar-se seu assistente em Frankfurt.
Com a ascensão do nazismo deixa a Alemanha em 1934 e tenta encontrar um posto numa universidade da Suíça, depois na França. Foi para a Inglaterra em 1935, ano em que começou a redação do livro O Processo Civilizador. Com alguns intervalos em outros países, viveu neste país até 1975, onde foi professor no Adult Education Center e na Universidade de Leicester. Além da Inglaterra, foi professor de Sociologia na Universidade de Gana, perto de Accra, entre 1962 e 1964 e, depois deste período, foi professor convidado na Holanda (Amsterdã, Haia) e na Alemanha (Münster, Constanz, Aix-la-Chapelle, Frankfurt, Bochum, Bielefeld). Depois de 1975, passa a dividir sua vida entre Amsterdã e o Centro de Pesquisas Interdisciplinares (ZIF) de Bielefeld. Em 1977 recebe o prêmio Adorno da cidade de Frankfurt pelo conjunto de sua obra. A partir de 1984 passa a viver definitivamente em Amsterdã, onde morre em 1990.

A obra sociológica

Um dos aspectos marcantes do conjunto da obra de Norbert Elias é organicidade teórica, tendo como uma de suas principais bases a análise da dinâmica entre indivíduo e sociedade, buscando ir além das perspectivas fragmentadas sobre a condição humana, que enfatizam aspectos particulares da vida, tais como ideias, valores, normas, modo de produção, ou mesmo instintos e sentimentos e sua sublimação. O autor desenvolveu alguns conceitos importantes para as ciências sociais, tais como o de configuração, que reporta a idéia de que a ação de um indivíduo está inserida numa rede de ações e reações, como também de habitus, que se refere aos elementos que caracterizam o comportamento em uma sociedade. Os trabalhos fundadores destas análises na trajetória acadêmica de Norbert Elias foram A Sociedade de Corte e O Processo Civilizador I e II que, segundo Roger Chartier, são obras complementares.

Algumas de suas principais obras:
O processo Civilizador I e II (1939)
Os Estabelecidos e os Outsiders (1965) A Sociedade de Corte (1969) Introdução a Sociologia (1978) Sociologia do Conhecimento (1982) Envolvimento e Alienação (1983) Sobre o Tempo (1984) A Condição Humana (1985) Em Busca da Excitação (1986) A Sociedade dos Indivíduos (1987) A Teoria do Símbolo (1991) Mozart: A Sociologia de um Gênio (1991)

O processo civilizador
Exatamente pela organicidade da obra de Norbert Elias é que se torna importante compreender alguns elementos de suas abordagens e conceitos para uma melhor compreensão do livro Mozart: a sociologia de um gênio.
O autor constrói uma análise profunda sobre o processo de longa duração da “curialização” da elite da sociedade francesa entre os séculos XI e XVII, ou seja, a trajetória de transformação da nobreza feudal para a nobreza de corte. Isso remonta ao ordenamento social que se constitui a partir das interações da sociedade romana, após o declínio de seu império, com os diversos povos europeus considerados bárbaros pelos romanos. Em tais grupos estavam fortemente presente os aspectos tribais, estruturados em função do clã e da família.
O contexto feudal da Idade Média forma-se a partir desta interação, dando origem a uma sociedade fundamentalmente organizada em três ordens com funções definidas: o Clero, que se ocupava da mediação com o sagrado na perspectiva cristã; a Nobreza, dedicada aos ofícios relacionados à guerra; e a Plebe, destinada aos trabalhos predominantemente relacionados à agricultura e à manufatura. As relações de poder se caracterizavam pela figura do rei sem poder, vinculado a senhores feudais por códigos de vassalagem, que instituía as formas de alianças entre estes grupos.
Com a expansão do comércio e o desenvolvimento da classe burguesa, inicia-se uma longa trajetória de reorganização das relações sociais e da constituição dos Estados-Nação, através da unificação do poder em torno da figura do rei. Era necessário que este passasse a deter o monopólio fiscal e militar, e que fosse atribuído novos espaços e sentidos para a nobreza feudal em uma corte hierarquizada. Assim, o processo de adequação deste grupo social é marcado pela etiqueta da corte.

A etiqueta da corte e o processo de individualização
O processo de condicionamento e transformação da nobreza guerreira em nobreza de corte implicava em novos vínculos associados a um Estado centralizado na figura do rei, que exigia novos ritos da política, novas funções e de comportamentos extremamente regulados por regras de etiqueta que traziam a representação do modelo de hierarquia social. Isto implicava em um alto grau de contenção de afetos, instintos e pulsões, como também a estruturação do comportamento pessoal adequados às máscaras sociais, como uma alegoria das distinções nesta sociedade.
Estas “coerções das paixões” vivenciadas pelas elites cortesães vão contribuir para a formação de uma autoconsciência, com base no “distanciamento do homem da natureza, dos outros homens e de si mesmo” (VIEIRA, 2003). Assim, através desta “economia dos afetos”, o indivíduo passa a distinguir-se socialmente a partir de suas ações. É na constituição deste novo habitus que surge a imagem do artista de uma maneira mais próxima ao que é concebida na atualidade.

Arte e a corte
Nesta sociedade marcada pelo autocontrole, a arte se torna o espaço de vazão das paixões e dos impulsos contidos, como uma fuga para um mundo de sonhos, onde há uma nostalgia por parte desta nobreza de um passado bucólico, de pureza e liberdade. Desta forma, a figura do artista traz uma ambígua representação nesta sociedade: por um lado tornavam-se catalisadores desta “economia de afetos”, contribuindo para a sublimação dos conflitos gerados pelos distanciamentos do autocontrole, que fomentava uma imagem “redentora” dos mesmos; por outro, sua condição na sociedade de corte não lhe atribuía prestígio, mas sim deveres como qualquer serviçal a disposição das necessidades – no caso, artísticas – de seus patronos.
Neste período, o valor do virtuosismo de um músico ou o que atualmente concebemos como genialidade, era visto como um dom natural que tomava posse do artista, fazendo dele um instrumento a serviço da natureza, da razão, da arte ou mesmo de um patrono. Posteriormente, com a consolidação dos valores burgueses, a genialidade se torna um atributo de capacidades pessoais.

Músicos Burgueses na Sociedade de Corte – Os paradoxos na configuração do indivíduo do século XVIII
O livro Mozart, sociologia de um gênio está baseado em um contexto de transição histórica, onde Norbert Elias se alicerça nos processos dos dados sociais observáveis. Elias situa a vida de Amadeus Mozart em “em um período que surge da dinâmica do conflito entre os padrões de classes mais antigas, em decadência, e os de outras, mais novas, em ascensão” (1995: 15), onde mais que uma biografia, seu trabalho é um estudo de trajetória de um artista.
Vale observarmos que Elias pensa neste contexto como um conflito de padrões. Conflito este que ia para além do embate entre os valores e ideais das classes aristocráticas da corte e dos estratos burgueses. O sociólogo não reduz sua análise às questões meramente sociais, mas do reflexo dessas questões no interior do próprio indivíduo. Para o autor, a questão principal estava em como, para o indivíduo, este conflito perpassava toda sua existência social.
Em seu texto, Elias utiliza os conceitos de establishment e outsider, fazendo uma nítida distinção entre os grupos de outsiders burgueses e o establishment cortesão como grupos em uma arena política de conflitos. Porém, uma questão que deve ser ressaltada em sua análise é que, para o sociólogo, a cultura era uma arena politicamente menos perigosa e Amadeus Mozart lutou contra o poder estabelecido de uma sociedade do patronato utilizando sua própria música em prol de sua dignidade pessoal. Elias chama a atenção para o lugar comum das reificações das categorizações sociais referentes às mudanças sociais da segunda metade do séc. XVIII, quando da derrota da nobreza feudal já solapada pela mudança econômica da Revolução Francesa.
Os problemas observáveis dos seres humanos são categorizados por conceitos de classes rebaixados a clichês, como “nobreza”, “burguesia”, “feudalismo” e “capitalismo”. Categorias como estas bloqueiam o acesso a uma maior compreensão do desenvolvimento da música e da arte em geral. Esta só é possível se a discussão não se restringir aos processos econômicos ou aos desenvolvimentos da música, e se, ao mesmo tempo, for feita uma tentativa de iluminar o destino das pessoas que produziram música e outras obras de arte no interior de uma estrutura social em transformação (1995: 28).
As palavras “civilização” e “cultura”, neste período, foram utilizadas pela cultura germânica como símbolos de padrões diferentes de comportamento e sentimento. Em uma clara tensão entre os círculos do establishment cortesão e os grupos de burgueses outsiders. Isso chegou ao ápice no fim do século XX com a ascensão das duas classes econômicas das classes média e da aristocracia. Ele cita a fusão dos interesses entre burgueses e nobres, porque é resultante justamente desse jogo, assim como foi terreno fértil para as diferenciações entre o absolutismo aristocrático e o absolutismo burguês e proletário.
Sempre articulando o indivíduo e sua relação com seu meio, Elias aponta para a “vida paradigmática de Mozart” e chama a atenção para:
O destino de um burguês a serviço da corte no final do período quando, em quase toda a Europa, o gosto da nobreza de corte estabelecia o padrão para os artistas de todas as origens sociais, acompanhando a distribuição geral de poder. Isto se aplicava especialmente à música e à arquitetura (1995: 27).
De acordo com Elias, que ressalta as diferenças entre essas especializações no campo da arte, a Literatura e a Filosofia conquistaram maior liberdade de produção através das publicações de livros, porque já havia na Alemanha (na segunda metade do séc. XVIII) um público leitor grande e crescente em meio à burguesia alemã deste período. Já a música, ainda era subserviente ao patronato das cortes, principalmente de Viena. Novamente vale destacar que além do círculo restrito da corte, haviam os círculos aristocráticos e da burguesia urbana em formação que seguia os modelos preconizados pela corte.
Cabe neste momento fazermos referência às mudanças sociais ocorridas na segunda metade do séc. XIX no contexto sociológico brasileiro que foi, por sua vez, resultante de um processo de modernização tardia. Os difíceis processos de ascensão social enfrentados por personagens importantes deste cenário de transição, como Euclides da Cunha, são um exemplo dos ecos da chamada sociedade de corte (como cunhou Elias), no caso a brasileira, que era o modelo em que predominava a chamada “aristocracia de berço” 1. Como cita a autora Regina Abreu:
1 Apud, Celso Castro. In ABREU, Regina. O Enigma dos Sertões.
O acesso aos postos mais elevados nas carreiras mais importantes era determinado pelo capital social herdado, impossibilitando que indivíduos, mesmo talentosos e tecnicamente preparados, mas com poucos recursos econômicos e desprovidos de capital familiar, pudessem atingi-los (1998: 67).
Para Norbert Elias não havia escolha para Mozart. De acordo com o autor, o músico, quer como instrumentista, quer como compositor, tinha que se submeter aos padrões da corte, de preferência uma corte rica e esplêndida. O exemplo de Salieri, evidenciado no filme Amadeus, compõe bem esta imagem. Filho de comerciantes, burgueses, conquista um cargo na corte de Viena, mas se mantém como um compositor de um “estilo” contido, digamos assim.
Elias salienta que, mesmo nos países protestantes, em que um músico poderia ocupar posições como organista de igreja em uma das cidades grandes e semi-autônomas, ele deveria preferencialmente já ter ocupado um cargo similar numa corte. Na sociedade de corte o status de um músico era o mesmo de um cozinheiro ou pasteleiro. Todos tinham que, obrigatoriamente, estar cientes de suas posições subalternas sem serem escravos. Estes funcionários eram pejorativamente chamados de “criados de librè”. O pai de Mozart, mesmo não satisfeito com sua posição social, se submeteu a esta estrutura.
Esta era a estrutura fixa em cujo interior cada talento musical individual tinha de se manifestar. Não é possível compreender a música daquela época, seu “estilo”, como muitas vezes se diz, sem ter em mente, de maneira clara, tal estrutura (ELIAS, 1995: 18).
Elias mantém em Mozart, sociologia de um gênio uma postura crítica a um aspecto que as biografias recorrem correntemente. Da falta de um olhar sociológico sobre o indivíduo, não importa quão incomparáveis sejam suas realizações pessoais. Mesmo que aquele indivíduo seja único em sua existência.
É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo teórico verificável da configuração que uma pessoa – nesse caso um artista do séc. XVIII- formava, em sua interdependência com outras figuras sociais da época (1995:18).
Fica claro o elogio de Elias à Sociologia. Ele apresenta um modelo das estruturas sociais da época e a questão das diferenças de poder. Esta leitura nos remete ao estudo dos campos subterrâneos de poder de Pierre Bourdieu, onde o indivíduo, segundo o teórico francês, de certa forma sabe “até onde pode ir” na esfera social em que se insere; qual o seu campo de ação.
Só dentro da estrutura de tal modelo é que se pode discernir o que uma pessoa como Mozart, envolvida por tal sociedade, era capaz de fazer, enquanto indivíduo, e o que- não importa sua força, grandeza ou singularidade - não era capaz de fazer. Só então, em suma, é possível entender as coerções inevitáveis que agiam sobre Mozart e como ele se comportou em relação a elas - se cedeu a sua pressão e foi assim influenciado em sua produção musical, ou se tentou escapar ou mesmo se opor a elas (1995: 19).
Os músicos em sua maioria vinham de origem burguesa e por isso tinham que se adequar aos padrões da corte, ao chamado establishment da corte, ao seu comportamento, sentimento, vestuário, modos etc. Hoje em dia, essa adequação ao establishment é dada como óbvia. Elias cita o exemplo dos empregados de uma grande loja de departamentos que, para ascender na empresa, aprendem a se adequar à sua estrutura:
Mas em sociedades onde há um mercado razoavelmente livre de oferta e demanda e, mesmo em algumas áreas, de empregos para profissionais, a diferenças de poder entre o establishment econômico e os outsiders é muito menor que entre governantes absolutistas ou seus conselheiros e os músicos de sua corte – muito embora os artistas famosos e à la mode pudessem tomar certas liberdades (1995: 20).
O que Elias quer dizer é que havia uma nobreza de corte e uma burguesia de corte e compara o cargo de regente-substituto do pai de Mozart à dos empregados de uma empresa privada do sec. XIX. Mozart, assim como seu pai, foi um burguês de corte. A questão é que os sinais de subordinação eram mais evidentes dados os gestos de superioridade por parte dos governantes, tidos por naturais. Mozart vivia em dois mundos e teve que aprender “onde era o seu lugar”.
Na corte, a distância social era imensa, mas a distância espacial, muito pequena. As pessoas estavam sempre juntas, o senhor estava sempre ali. (...) Por um lado ele (Mozart) se movia em círculos da aristocracia de corte, cujo gosto musical adotou e cujo padrão de comportamento deveria seguir. Por outro, ele representava um tipo específico daquilo que somos obrigados a designar, através de um termo extremamente precário, “a pequena burguesia de sua época” (1995: 21).
Mozart, mesmo educado para se enquadrar aos padrões comportamentais de sua esfera social, não se adequou aos padrões comportamentais do homem de corte. Era rude, um bufão. Sabia que possuía um enorme talento e isso o fazia se sentir igual ou mesmo superior aos nobres. O músico, de acordo com Elias, representava a figura do gênio que ainda não tinha se configurado na sociedade de corte do século XVIII.
A ideia romântica de gênio, um enviado por Deus, um ser dotado de poderes divinos que manifesta a divindade pela obra de arte está associada à valorização do indivíduo. Elias assim define Mozart:
Era, numa palavra, um gênio, um ser humano excepcionalmente dotado, nascido numa sociedade que ainda não conhecia o conceito romântico de gênio, e cujo padrão social não permitia que em seu meio houvesse qualquer lugar legítimo para um artista de gênio altamente individualizado (1995: 23).
Esta, segundo Elias, é a chave de entendimento da situação de Mozart. Um gênio que viveu em uma sociedade em que o processo de individualização do sujeito está se configurando como um projeto ambivalente. E Mozart vivia nesta ambivalência do artista burguês na sociedade de corte, onde havia uma identificação com a nobreza da corte e seu gosto e também havia o “ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha” (1995: 24)
Mozart se torna um artista autônomo
Na Alemanha do século XVIII, existia uma espécie de mercado livre para os produtores literários, em conexão com a proliferação de pequenos Estados. Havia ,ou menos especializados, ligados a impressão, distribuição e venda de obras literárias. Crescia o público burguês instruído e interessado em livros alemães, muitas vezes em deliberado contraste com a nobreza de corte, basicamente interessada na época em escritos franceses. Dessa forma surgiu no século XVIII a figura social do escritor autônomo, de modo apenas experimental, pois ainda era muito difícil para um profissional manter-se e a sua família sem a ajuda de algum patrono nobre.
A decisão de Mozart de largar o emprego em Salzburgo se deu pelo motivo de não suportar mais a ideia de ser um empregado permanente de um patrono. Mozart desejava ganhar a vida como artista autônomo, vendendo seu talento como músico e suas obras neste mercado livre emergente. No entanto, conforme explicitado anteriormente, esta decisão ocorreu em uma época em que as estruturas sociais ainda não ofereciam tal lugar para músicos ilustres. O mercado da música e suas instituições correspondentes estavam apenas surgindo. A organização de concertos para um público pagante e as atividades editoriais de venda de músicas de compositores conhecidos, mediante adiantamentos, se encontrava na melhor das hipóteses, em seus estágios iniciais. Especificamente, faltavam ainda em grande parte as instituições necessárias para que o mercado ultrapassasse o nível local, sobretudo na Áustria e em nas outras cortes alemãs, onde a grande maioria dos concertos eram óperas – gênero preferido por Mozart – destinadas às elites.
Elias afirma serem as ideias de Mozart não muito precisas quanto ao seu futuro. A situação em Salzburgo tornara-se insustentável, o lado negativo estava bem claro para ele. No entanto, para entender sua personalidade e sua real situação frente à sociedade é importante imaginar como ele se sentia. Seu empregador determinava quando e onde deveriam ser feitos seus concertos e, muitas vezes, quais deveriam ser suas composições. Provavelmente eram estes os termos usuais de um contrato de trabalho. Aceitando as condições de seu ofício, todos os músicos profissionais com empregos permanentes viviam exatamente como ouvires ou pintores, sob restrições que Mozart já não tolerava. Ele tinha conhecimento do seu talento e acreditava que através dele poderia tornar-se senhor de sua própria obra e ser reconhecido como tal. Mas é importante esclarecer que este reconhecimento se restringia apenas a sociedade de corte.
Segundo Elias, decisivo mesmo para a vida de Mozart foi ter apostado em seus próprios objetivos e anseios pessoais. Acreditando sempre em sua opinião sobre o que fazia ou não sentido, ele antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista. Institucionalmente a situação que prevalecia em sua época era do artista assalariado, oficial. Mas a estrutura de sua personalidade era de alguém que desejava, acima de tudo, seguir sua própria imaginação, numa época em que a composição e a execução da musica mais valorizada pela sociedade repousava exclusivamente nas mãos de músicos artesãos com postos permanentes, sejam eles nas cortes ou nas igrejas das cidades.
Elias também afirma que por alguns anos o sucesso esperado por Mozart realmente se materializou Contudo, este sucesso não durou muito, visto que a sociedade estava acostumada a ouvir e dar valor ao que a corte ouvia e tudo o que não se encaixasse nos padrões estabelecidos por essa corte era afastado. É possível perceber também a peculiaridade do mercado que Mozart tinha a sua disposição. Mesmo como artista autônomo, ele ainda dependia, como qualquer “artista-artesão”, de um limitado circulo local de clientes extremamente fechado e fortemente integrado. Se corresse o
rumor de que o imperador não tinha um músico especialmente em conta, a boa sociedade simplesmente o deixava de lado.
Mozart tinha colocado ao tornar-se artista autônomo, toda a sua esperança de êxito no público vienense, na opinião publica da alta sociedade da capital austríaca. Para Elias, esse foi claramente um dos maiores desejos de sua vida e uma das mais importantes razões para sua tragédia.
A tradição biográfica europeia, uma “intelectual desumanidade”
Uma das inquietações levantadas por Norbert Elias que vale a pena ser discutida diz respeito à dissociação do artista e do ser humano realizada pelos biógrafos de Mozart. A partir da leitura de algumas biografias sobre a vida do músico, Elias percebeu que é bastante comum a vinculação da ideia de que a “maturação” do talento do artista desenvolve-se de maneira independente ao próprio artista, gerando suposições absurdas, como a de que Mozart não entendia a si mesmo. Outra noção comum criticada pelo sociólogo é a de que a criação de grandes obras de arte não depende da existência social do seu autor. Os biógrafos supõem que compreendê-lo como artista não implica necessariamente em compreendê-lo como homem. Esta separação tende sempre a ser artificial, enganadora e desnecessária.
Segundo Elias, a imagem idealizante de gênio a que foi elevado Mozart em períodos posteriores a sua morte sempre ofuscou o seu intenso esforço em aprender e reinventar a linguagem musical. É impossível compreender Mozart – tanto o artista quanto o ser humano – sem entender sua história de vida.2 A rígida educação musical imposta por seu pai, as incansáveis viagens pelas cortes européias durante sua juventude, o surpreendente amadurecimento do seu talento musical dos tempos de menino prodígio até tornar-se um dos maiores artistas do continente, e mesmo suas atitudes conflitantes com relação à posição do artista na sociedade de corte. Tudo isto é ignorado a partir do momento em que Mozart é tratado conforme a visão romantizada de gênio – que acredita ter os artistas um dom especial, uma capacidade criativa inspirada por leis divinas ou por forças naturais. Para Elias, ignorar as dificuldades da vida do músico é uma visão excessivamente estreita, um tanto áspera, “uma intelectual desumanidade” (2009: 54).
Entender o artista no ser humano
Desta forma, esta relação entre o “homem” e o “artista” tem sido especialmente desconcertante para muitos estudiosos, principalmente porque a personalidade de Mozart combinava mal com o ideal preconcebido de gênio. O músico era um homem simples, extremamente vulgar, muitas vezes infantil. Sentia grande necessidade de amor desde sua tenra idade. A questão é como alguém tão fora dos padrões foi capaz de produzir composições tão sublimes, profundas, sensíveis e misteriosas. A visão da dicotomia romântica, renovada pelo conflito entre civilizados e sua animalidade, jamais resolvida até hoje, nunca foi capaz de dar conta da complexa figura de Mozart.
2 Neste ponto faz-se necessário lembrar a posição de Bourdieu sobre esta temática. Segundo o sociólogo francês, falar em uma história de vida implica em supor que a vida é uma história, e que esta conduz à noção de trajetória. “Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos (...) é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações” (2001: 189).
Elias é enfático ao afirmar que entender o artista no ser humano, ou seja, esclarecer as conexões entre a experiência e o destino do artista é importante para a compreensão de nós mesmos enquanto seres humanos. A autonomia das obras de arte e o complexo de problemas a ela associados não nos eximem da obrigação de investigar esta conexão. Saber que um artista possuiu tantos problemas e que mesmo assim foi capaz de compor obras sublimes, como a ópera Don Giovanni, é importante para “descanonizar” a figura do gênio frente à sua sociedade.
Expressões como “gênio inato” ou “capacidade congênita de compor” não exprimem a realidade de Mozart. Ao dizermos que certa característica da pessoa é inata estamos dizendo que ela é herdada biologicamente da mesma maneira que os olhos, o cabelo e o tom de pele. No entanto, não faz sentido considerar que alguém pode herdar essa propensão natural, geneticamente enraizada, de fazer algo tão artificial como a música. A consciência, qualquer que seja sua forma específica, não é inata a ninguém. No máximo, o potencial para formar uma consciência é um dote humano natural. Ninguém pode ter a menor dúvida de que, desde criança, Mozart mostrou uma capacidade extremamente forte de transformar suas energias instintivas através da sublimação, como afirma Elias: “Suas energias foram concentradas, desde muito cedo, em processos específicos de sublimação, em expandir áreas especializadas de consciência e de conhecimento, que ampliaram seu fluxo de fantasias instintivas em vez de se opor a ele” (2009: 83). Porém, não podemos nos esquecer que entre os fatores que claramente influenciam o processo de sublimação estão a extensão e a direção da sublimação nos pais da criança. Leopold Mozart, o pai, era um músico de corte com acentuada tendência pedagógica. Nao restam dúvidas de que a dedicação que Mozart, filho, oferecia à música foi herdada por seu pai. Mas não por motivos biológicos, e sim, por questões ligadas a exigente educação imposta ao grande músico precocemente. Como afirma Elias “O pai era um perfeccionista pedagógico (...). O filho era um músico perfeccionista” (2009: 85).
Acreditamos que para este término do trabalho, o mais interessante é relembrar os motivos que levaram Elias a escrever esta obra sobre a vida de Mozart. De acordo com o sociólogo, entre as mais interessantes perguntas não respondidas de nosso tempo está a que indaga quais características estruturais fazem com que determinadas obras, determinados artistas, sobrevivam ao processo de seleção de uma série de gerações, sendo gradualmente absorvidas no padrão de obras de arte socialmente aceitas – como é o caso de Mozart – enquanto outras pessoas caem no ostracismo. Esta não é uma questão respondida por Norbert Elias em Mozart, sociologia de um gênio, mas sem dúvida, é constantemente interrogada.

Referências bibliográficas:

ABREU, Regina. O Enigma dos Sertões. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998.
BARIANI , Edison . Indivíduo, sociedade e genialidade: Norbert Elias e o caso Mozart. Revista Urutágua (Online), Maringá-PR, v. 8, p. 1-1, 2005. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/008/08soc_bariani.pdf. Acessado em: 30/05/2010.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 4ª edição.
________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CHARTIER, Roger. “Formação social e habitus: Uma leitura de Norbert Elias”. In: A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995.
VIEIRA, Mariella Pitombo. A arte, o artista e o processo civilizador. Anais eletrônicos do V Simpósio de Filosofia e Ciência. UNESP Marília Publicações, 2003. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/Artigos/Mariellaarte.pdf. Acessado em: 30/05/2010.

martes, 15 de junio de 2010

Memória SOcial I. Roteiro de Leitura da obra “Memória Coletiva”, Maurice Halbwachs.

por Fábio Vilani Simini Francisco dos Santos Costa Yazid Jorge Guimarães Costa

APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E OBRA

Maurice Halbwachs foi um sociólogo francês nascido em Reims em 1877 e que veio a falecer em 1945 no campo de concentração de Buchenwald. Ao longo de sua vida teve contato com diversos autores, tais como Durkheim, Bergson, Marx e Weber, o que, de certa forma, explica a variedade de seus interesses em pesquisa.
Sua irmã, J. -Michel Alexandre nos desenha na introdução da obra “Memória Coletiva”, publicada postumamente, o retrato de uma figura dedicada aos estudos acadêmicos, sem nunca perder de vista as implicações sociais de seu trabalho, como fica claro com a citação do trabalho, desenvolvido por este ainda no início de sua carreira no sentido de analisar a especulação imobiliária em Paris, sob o título inicial “As expropriações e o preço dos terrenos em Paris de 1860 a 1900”, publicado em 1909.
Impressões sobre a personalidade do autor também nos são dadas por Alexandre, apresentando que este era uma “criança tranqüila e compenetrada, que lia Júlio Verne com um atlas na mão”, e que a partir do contato com Bergson e com a Filosofia, no Liceu Henri IV, passou a ter uma “discreta aparência de cortesia e silêncio", o que é visto por sua irmã com a figura do “filósofo”.
Porém, apesar de vermos este retrato como possível, e, bastante coerente, acreditamos ser necessário apresentar o que nos diz Gerard Namer, tendo em vista que a leitura deste é pautada por uma criticidade e uma ênfase não nos aspectos psicológicos de Halbwachs, e sim de sua atuação enquanto intelectual, não apenas na academia, mas, principalmente na sociedade.
Ao estudar a obra de Maurice Halbwachs, Gerard Namer dividiu a “vida” deste em quatro momentos distintos, mas que se completam para formar uma visão deste autor.
O primeiro momento é colocado de 1894 a 1901, quando Halbwachs está sob a influência de Bergson, isto se dando inicialmente no Instituto (Liceu) Henri IV, e, em seguida, no Collège de France, bem como na École Nationale Supérieure.
A partir de 1901 até 1905, Namer coloca que Halbwachs esteve dedicado a investigações sobre Leibniz, o que seria uma tentativa de compreensão do pensamento bergsoniano a partir da leitura deste autor que foi uma das fontes de inspiração para Bergson, mas que tem reflexo em sua obra “os quadros sociais da memória” com a utilização do texto “Monadologia” para refutar a tese de Bergson que vê a realidade como “dual” (Matéria e Memória), mas que esta, a realidade, seria como a mônada de Leibniz “equação racional e vida de uma vez, pensamento racional e memória e duração ao mesmo tempo.”
Em 1909 começa o terceiro período da vida de Halbwachs, tal como proposto por Namer, e que vai até 1925 com a publicação de “os quadros sociais da memória”, e o de maior importância para a compreensão da obra – enquanto um conjunto – deste autor. É desse momento que surge seu compromisso político com o socialismo, o que foi possível graças ao seu encontro com as teorias socialistas a partir das leituras de Marx e Durkheim, por exemplo.
É neste período também que Halbwachs vira correspondente do periódico “L’Humanité”, de Jaurés, que tem como responsáveis por seções regulares Lucien Herr e Marcel Mauss.
Namer nos aponta, porém, que Halbwachs tem sua atuação no “grupo durkheimiano” vista enquanto marginal devido a sua “paixão economista”, sendo que há certo “inconformismo” da parte de Halbwachs para com o grupo, o que é datado por Namer a partir de 1905, tendo em vista que sendo socialista, quer fazer compatível seu ideal com a sociologia, o que o levará a recorrer ao conceito de classe social, mas, sobretudo, o que o conduzirá provavelmente a lançar-se ao estudo da economia política de seu tempo.
Namer concorda com esta afirmação, mas a considera incompleta tendo em vista que para este, Halbwachs tem por característica uma coragem política e intelectual, que o permite ter uma noção de avaliação das idéias sem princípio de autoridade, o que fica claro com a publicação em 1918, na Revue Philosophique, do artigo “A doutrina de Durkheim”, mas que perpassa todas suas análises críticas sobre Durkheim, onde se propõe a “avaliar” as idéias deste autor pelo proveito que pode tirar delas. Mas Namer aponta que Halbwachs também teve esta postura em relação à tradição econômica marxista do socialismo.
Namer aponta ser de fundamental importância atentar para a compreensão da influência de Simiand nas obras de Halbwachs anteriores a 1914, posto que seja a partir do contato com este que Halbwachs vai entrar no grupo de Durkheim.
É ressaltado também por este autor que ao publicar “Os quadros sociais da memória” não se deve imaginar um começo de novas investigações e de uma nova carreira, mas o ponto de chegada de uma vida que conduz ao duplo marco histórico da guerra de 1914-18 e das transformações imediatas do pós-guerra. Fica claro para este, que se utiliza da interpretação de Michel Verret sobre Halbwachs, que o que caracteriza a obra deste autor antes de “os quadros sociais da memória” é a “disponibilidade teórica”, ou, a amplitude do campo coberto que vai desde a filosofia leibniziana, cálculo de probabilidades, história da teoria do estado e economia política.
O autor nos conta, como já apresentado anteriormente acerca de Durkheim e as teorias marxistas, que esta rejeição a um princípio de autoridade é uma marca sua no trato de diversos autores, mesmo Bergson ou Freud, além de Weber.
Ao fim desta análise do contexto no qual está inserido, e se inseriu, Halbwachs, Gerard Namer nos põe que a questão central ao analisar a obra de Halbwachs, após o que já foi dito, é se há uma ruptura ou uma continuidade entre “os quadros sociais da memória” e “a memória coletiva”, colocando três conjuntos de questões sociais que a memória suscita: uma que havia sido “escassamente utilizada nos ‘quadros sociais’ e que se converterá em essencial na ‘memória coletiva’, é uma memória que se poderia chamar uma corrente de memória social ou coletiva, que antecipa a conclusão final de Halbwachs, na qual vincula pensamento e memória”; o segundo diz respeito à idéia da influência do que nos colocam as pessoas de carne e osso ao nosso redor; o terceiro conjunto remete à idéia do “eu”, indivíduo, como uma realidade social.
Em seguida Namer reflete sobre a imprecisão no uso dos termos memória coletiva e social por Halbwachs, onde Namer diferencia a memória social a partir do termo “corrente de memória” cuja tradição não tem por suporte um grupo, sim um periódico (publicação) neste caso, e que “a memória coletiva propriamente dita é, em sentido estrito, a memória de um grupo ou de uma sociedade, e, em sentido amplo, a memória da sociedade nacional que implica todas as sociedades particulares.
A partir de 1926 começa o derradeiro período na vida de Maurice Halbwachs e que será crucial para o desenvolvimento da obra “a memória coletiva”. Namer põe que a obra foi possível, além do que já foi dito anteriormente, devido à reflexão de Halbwachs acerca do contexto, no qual estava vivendo, marcado pela ascensão do nazismo na Alemanha, a mudança de posição da esquerda francesa da qual fez parte desde antes da guerra de 1914-18 e a qual ajudou a manter a posição dos socialistas no governo para sustentar a referida guerra, e que é vista – a mudança de posição – enquanto covarde por aderir ao pacifismo.
Namer nos apresenta também, a idéia de que tal obra, “a memória coletiva”, é imbuída de um aspecto político no sentido em que se filia a um racionalismo, o que estaria relacionado a uma luta antifascista, sendo este caráter mais claro, ainda que escrito de maneira supostamente criptografada, no artigo “A memória coletiva entre os músicos”, a partir da crítica colocada da utilização da obra de Wagner pelos nazistas para aumentar o ânimo das tropas.

A MEMÓRIA COLETIVA ENTRE OS MÚSICOS

Diferente do que nos aponta Gerard Namer, não acreditamos na ênfase da propaganda antifascista que este coloca como sendo um ponto chave na compreensão do artigo “A Memória Coletiva Entre os Músicos”, que, segundo nos conta não apenas Namer, mas, também sua irmã J. -Michel Alexandre, deveria ser a introdução da obra “A memória coletiva”, mas, por decisão de Jean Duvignaud, ela aparece em algumas edições enquanto anexo, sendo a “vontade do autor” apenas realizada na publicação da edição crítica de Gerard Namer.
Acreditamos ser este, sim, um texto introdutório para o que será lido nos capítulos “memória individual e memória coletiva”, “Memória coletiva e memória histórica”, “a memória coletiva e o tempo” e “a memória coletiva e o espaço”.
Ao utilizar-se do exemplo do grupo dos músicos, acreditamos que Halbwachs só faz mudar o exemplo que é recorrente em sua obra, ao tratar da construção da memória, que é o grupo familiar.
É recorrente o uso deste grupo no sentido de exemplificar as teorias, e, talvez por isso a mudança para um grupo diferente tenha causado estranheza, não apenas em Duvignaud, bem como até mesmo em Namer.
Halbwachs neste artigo, tenta problematizar a lembrança do som, seja ele musical ou natural, e chega à conclusão, ainda que isto não fique explicito, de que para lembrarmos, usamos sempre um código de representações. Quando escutamos o som de um martelo, não lembramos o som do martelo, lembramos da imagem do martelo em uso. Quando escutamos uma porta ranger, lembramos dela sendo aberta ou fechada. Isto se dá também com outros sons, mas, como nos diz Halbwachs, isto acontece em graus de complexidade diferentes para diferentes grupos.
Ao nos mostrar que existem formas diferentes de lembrar uma música, que pode ser do cantarolar, ler uma partitura, ler e decodificar (executar) a partitura, ou até ter vários trechos de músicas “no” cérebro em que possamos lembrar-nos delas sem a necessidade de tornar esta lembrança externa, elas não são colocadas por Halbwachs como modos “bons” ou “ruins” de se lembrar, são modos diferentes, inerentes a cada grupo, tendo em vista que cada grupo desenvolve formas diferentes de fazer esta memória ser compreendida, logo construída, e dessa forma, compartilhada coletivamente.
O caso dos músicos deixa claro para os leitores de que Halbwachs não acredita em uma “memória total”, nós sempre podemos lembrar, mas não de tudo. No máximo, podemos ampliar este limite ao externar estas memórias, ou seja, criando uma forma de representá-las no exterior, a partir de um código compartilhado pelo grupo. Isto acontece no caso dos músicos “eruditos” a partir do desenvolvimento das partituras, que são conjuntos de símbolos que representam a escala, altura, intervalo dos sons. Mas, estes não são os sons.
Halbwachs, ao usar o exemplo de um virtuose, deixa clara a impossibilidade de tudo lembrar, principalmente por que o ao isolarmos este músico, privando-o de “todos esses meios de tradução e memorização dos sons que a escrita musical representa: para ele será muito difícil, quase impossível, fixar na memória número tão grande de lembranças”.
Este fato exemplifica, também, que, como já dito, a construção da memória se dá coletivamente. É o coletivo que determina o que deve ser lembrado, e atua no sentido de permitir esta lembrança, no caso dos músicos, é o desenvolvimento da partitura, mas podemos citar, por exemplo, representações pictóricas, livros e uma infinidade de suportes desenvolvidos para reter memória por diversos grupos.

A MEMÓRIA COLETIVA

Em sua obra “A Memória Coletiva”, Halbwachs se utiliza, didaticamente, de muitos exemplos para ilustrar suas idéias. Ao longo deste capítulo, percebemos que seu fio condutor está na interação existente no processo de recordar entre indivíduo e coletividade.
O indivíduo, inserido no grupo e com ele se relacionando, participa do processo de construção de uma memória coletiva. Para o autor, o indivíduo migra constantemente de grupos, experimentando suas influências, idéias e maneiras de pensar. Por compartilhá-las, nunca estaria sozinho, permanecendo atrelado a essas pessoas e ao grupo em que pertencem. Assim, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, ou seja, seria apenas uma “intuição sensível” do indivíduo que capta, através da consciência, as diferentes correntes sociais e as interioriza.
Uma viagem a Londres é usada como exemplo para descrever esse processo. Mesmo não conhecendo a cidade, um turista que possuí referências previamente obtidas do local não seria capaz de guardar lembranças totalmente individuais ao passear pelas ruas londrinas. Suas lembranças são influenciadas por aqueles que “já tiveram essas lembranças em comum” .
Halbwachs afirma ainda que quando um grupo reúne suas lembranças, é possível descrever com certa exatidão fatos e objetos que presenciaram. Os indivíduos reconstituem toda uma seqüência de atos e palavras ditas dentro de determinadas circunstâncias e muitas vezes, evocam fatos que uma pessoa, individualmente, não se recordaria. As lembranças se complementam.
Muitas vezes, as imagens remontadas pelo grupo são menos exatas do que as imagens individuais. Pode ser que essas imagens não reproduzam o passado da maneira mais correta e que a lembrança que estava primeiramente na memória seja sua expressão exata: “a algumas lembranças reais se junta uma compacta massa de lembranças fictícias”. O oposto também pode ocorrer: os depoimentos dos outros podem corrigir e reorientar a lembrança do indivíduo.
“Em um e outro caso, quando as imagens se fundem muito estreitamente com as lembranças e parecem tomar sua substância emprestada a estas, é porque a nossa memória não estava como uma tabula rasa, e nós nos sentíamos capazes de nelas distinguir, por nossas próprias forças, como num espelho turvo, alguns traços e alguns contornos (talvez ilusórios) que a imagem do passado nos trazia.”

No entanto, vale ressaltar que essas memórias coletivas não se encontram livres do “temível” esquecimento, sua duração está limitada a existência do grupo. Quando não subsistem mais testemunhos, por exemplo, ou quando um indivíduo perde contato com os que então os rodeava, “todo o conjunto de lembrança que temos em comum com eles desaparece bruscamente.”
Halbwachs também demonstra que o indivíduo exerce pouca influência no processo de rememorar. Para o autor, as lembranças são exteriores ao indivíduo, logo, a medida que nos deparamos com uma complexidade de dados sociais, torna-se impossível recordar. Uma questão é então levantada para ilustrar: “Como podemos recordar certo acontecimento que ocorreu naquele ponto único em que se cruzam dois grupos dos quais participamos simultaneamente uma vez apenas e entre os quais não houve mais nenhum contato?”
Segundo a concepção halbwachiana, a evocação da memória individual seria uma forma do indivíduo tomar consciência da representação coletiva, uma vez que as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A partir desta vivência social, as lembranças são reconstruídas e até simuladas. Essas representações dos passados se baseiam na percepção de outras pessoas, seja na imaginação do que pode ter ocorrido ou através da internalização de representações de uma memória histórica.

REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE MEMÓRIA COLETIVA

Para Pollack, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual, como coletiva” . Portanto, a memória, compreendida enquanto objeto organizável passa constantemente por processos de enquadramento e ressignificação, que visa atender as exigências de credibilidade dos sujeitos pertencentes a uma coletividade.
Além disso, por se basear em referências comuns, geralmente fornecidas pela história – “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.” , – consolida a identidade da maioria frente à memória nacional, minimizando o conflito eminente com as projeções elaboradas por setores socialmente marginalizados que não se identificam com a interpretação oficial.
Durante esse processo de enquadramento, a memória se solidifica em suportes materiais que permite “a um ser vivo remontar no tempo, relacionar-se, sempre no presente, com o passado: conforme os casos, exclusivamente com o seu passado, com o da espécie, com o dos outros indivíduos.” . Essas recordações materializadas põem novamente em circulação a relação passado-presente e, através de sentimentos de filiação e origem, integram indivíduos e referências de períodos anteriores num fundo cultural comum.
Partindo da premissa que “toda organização política (...) veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma.” compreendemos melhor a mescla entre memória e identidade, o estabelecimento do sentimento de coerência, continuidade e pertencimento no indivíduo e no grupo em que este se insere. Destarte, podemos observar, por exemplo, a importância dos grandes homens que contribuíram para a unidade nacional na historiografia oitocentista .
O historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A invenção da tradição, atenta para a criação de instrumentos, por parte dos grupos sociais, capazes de assegurar e expressar a identidade, coesão social e estruturar as relações dos elementos pertencentes ao coletivo, nas palavras do autor, “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento social da coesão grupal.” .
A invenção das tradições políticas se deu de forma consciente e deliberada e teve seu êxito graças a sua fácil transmissão e a imediata assimilação por parte do público. Monumentos, edificações, datas festivas e outros elementos produzidos pelo aparato burocrático estatal, como selos e moedas, são empregados com o objetivo de alcançar uma “repercussão popular”, principalmente se articulados com jubileus cívicos que estampam as edições comemorativas.
Os sentimentos e pensamentos individuais estão inseridos em contextos e circunstâncias sociais definidos. Um grande número de lembranças reaparece porque o meio e as interações inter-individuais remetem à recordação. Segundo Halbwachs “quando um grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem”.
Entretanto, não existe uma única memória social que seria dividida por todo grupo. Cada membro insere elementos próprios e suas perspectivas nas presenças do passado na construção de sua memória. A memória coletiva é então compartilhada, mesclando no seu conteúdo uma dialética pessoal-coletivo
”Se o caráter coletivo de toda memória individual nos parece evidente, o mesmo não se pode dizer da idéia de que existe uma “memória coletiva”, isto é, uma presença e, portanto uma representação do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade.”

A referência à memória enquanto fenômeno social deve ser entendido com base na sua característica de conservar vestígios de períodos passados, fixando uma relação direta entre indíviduo-presente e fatos-passado.
Memória e identidade traçam socialmente uma conexão intima. A possibilidade de transmissão de conteúdos, por meio de criações exteriores, que não podem ser obtidas pela hereditariedade, assevera aos vestígios uma existência autônoma e define a coletividade e transgeracionalidade da memória. Em sua recordação, a relação inter-temporal é imediata.

GLOSSÁRIO
Intuição Sensível – “Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que – para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social – admitiremos que se chame intuição sensível” (HALBWACHS, 2006, 42)

Memória Histórica – Representação esquemática do passado, onde acontecimentos marcantes na história de um país auxiliam na construção da memória coletiva e pessoal.

REFERÊNCIAS
DANTAS, Camila Guimarães “Na costa visível da Memória e da História: algumas questões a partir de Halbwachs”, mimeo.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

HALBWACHS, Maurice A Memória Coletiva, Edições Vértice, Editora Revista dos Tribunais Ltda., SP, 1990.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas. São Paulo: Editora da Unicamp, 1990. p. 477

NAMER, Gérard “Antifascismo y “la memoria de los musicos” de Halbwachs (1938), in: Bustillo, Josefina Cuesta (ed) Memoria y Historia. Madrid: Marcial Pons, 1998.
POLLAK, M. Memória e identidade social. In: Revista Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n.10, 1992.
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989.
POMIAN, K. Memória. In: GIL, Fernando. (coord.) Enciclopédia Einaudi, v.42. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 2000.
ROUSSO, Henri. A memória não é mais o que era. In: AMADO, J; FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da História Oral Rio de Janeiro. Ed. FGV, 1996

Memória SOcial II. Lazzarato, Maurizio. La mémoire sociale: représentations et croyances. In: Puissances de l´invention: la psychologie économique de Gabriel Tarde contre l´économie politique. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, 2002. P. 211-249

por Rosalí Henriques

Sobre o autor:
Maurizio Lazzarato é sociólogo independente e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem.

Sobre o capítulo:
No capítulo sobre a memória social: representações e crenças, Lazzarato traça um histórico sobre a questão da memória social na obra de Gabriel Tarde, enfocando principalmente os embates com as teorias de Durkheim e Halbwachs, e unindo as idéias de Tarde à Bergson.

Memória e Trabalho
Segundo Lazzarato, Tarde elabora uma teoria da criação que introduz a memória e a atividade cerebral na explicação do fenômeno econômico e social. Lazzarato cita diversos autores que entre 1870 e 1914 fizeram estudos sobre questões físicas da memória, entre eles, Proust, Joyce, Svevo na literatura, Bergson e William James na filosofia , Ribot, Wundt e Freud na psicologia. Segundo ele, as pesquisas antecipam uma transformação radical na forma de viver e conceber o tempo.

Lazzarato discute os preceitos do marxismo frente ao pensamento de Hegel sobre as questões do espírito e da matéria. A discussão deste capítulo é sobre “como podemos desenhar uma nova imagem do pensamento e do mundo pela invenção e pela criação como propõe Gabriel Tarde?”

A filosofia do virtual: uma teoria não dialética da criação
Segundo Lazzarato, paraTarde a invenção é uma encarnação social do sistema de difernça. Para Lazzarato é em torno do conceito de diferença que há uma aproximação entre os pensamentos de Bergson e Tarde em relação a uma teoria social e uma ontologia da memória. Tarde critica a concepção de subjetividade na economia política e no marxismo e faz uma distinção entre afeição e afeto. O afeto é modo de pensamento não representativo enquanto a afeição é uma representação do que nos afeta.

Para Tarde as expressões da subjetividade não se resolvem inteiramente nas crenças e desejos, em julgamentos e vontades. Tarde propõe uma dupla virtualidade do sentido puro: “elemento afetivo e direncial do espírito”. Para Tarde: “existir é diferir, sentir é essencialmente diferenciar”.

Para Bergson a diferença é o tempo. É ele que distingue e diferencia o tempo e a duração. O pensamento dos dois autores se convergem também no conceito de virtual, numa concepção não idealista e antidialética do espírito. O virtual é a diferença, o tempo ou o sentir que constitui a parte inrrefutável e incorporável da ação (do corpo). Para Lazzarato a contribuição desses dois autores reside precisamente no conceito do virtual e da lembrança que converge numa teoria sobre a memória. Segundo estes dois autores, a memória ao mesmo tempo que produz, conserva e acumula a diferença (ou o tempo).
Lazzarato aponta Bordieu como um dos herdeiros de Tarde nessa questão da invenção do ato puro, o que Tarde chamou de criacionismo. Um problema que Lazzarato aponta na teoria de Tarde e Bergson é a questão da memória enquanto hábito, o esforço que a força virtual de criação deverá exercer para se inserir na necessidade. E como o corpo e o espírito têm uma memória voltada para o futuro a partir de suas hábitos, lembranças, afetos, línguas, representações, etc.

A memória social
Lazzarato expõe as idéias de Maurice Halbwachs sobre a memória, como herdeiro do pensamento durkheimiano, em oposição às idéias de Bergson sobre a memória social. Para Lazzarato são quatro as diferenças entre Bergson e Halbwachs: a primeira delas é a filosofia de ação, a segunda o papel do corpo que em Bergson não está desassociado da memória corporal, a terceira é o novo conceito de imagem que não se opõe ao real e por último, as duas teorias não podem ser comparadas porque estão em planos diferentes. Tarde e Bergson não negam o papel das instituições nos dispositivos sociais da memória, que Halbwachs apresenta nos Quadros Sociais da Memória, mas lembram que os quadros sociais conservam a memória no tempo. Lazzarato discute os preceitos da memória social defendidos por Halbwachs e diz que Durkheim não pensava dessa forma. Para ele, Durkheim estava mais próximo do pensamento de Bergson do que se imagina. Para Bergson, o que interessa é definir as condições ontológicas do presente que dura, do presente que passa e do presente que virá. Para Halbwachs as forças constitutivas da memória são a criação e a repetição.

A imitação como memória social
Para Lazzarato, Tarde se opõe à concepção de memória social de Halbwachs. Próximo da idéia de Bergson, ele define a união do sujeito com o objeto, da matéria, do tempo e do espaço, do individual e do coletivo como modalidade de diferenças. Ele chama isso de imitação. A imitação é uma memória em ato, uma força de difusão e conservação, é uma ação psicológica que difunde uma invenção e a conserva. Ele distingue, como Bergson, duas memórias: uma memória verdadeira e uma memória hábito. A função da imitação na sociedade seria conservar, integrando a morte na vida.

A memória (ou o cérebro) é uma sociedade
Em sua obra Lógica Social, Tarde faz a comparação entre a atividade mental da memória e a atividade social. Para ele, imitação e invenção são duas modalidade da memória: uma que conserva e a outra cria. Uma sociedade não é uma soma de indivíduos porque cada indivíduo é uma sociedade. A lógica da multiplicidade se aplica a todos os níveis. Aos pequenos estados nervosos do cérebreo Tarde as denominam como células cerebrais ou células nervosas: são as mônadas . Elas são ao mesmo tempo atividade psíquica ou vital e atividade espiritual. Tarde considera a memória individual e a memória social como duas multiplicidades.

A diferença e a repetição na memória social
Halbwachs via a memória como hábitos dos indivíduos e costumes da sociedade. Mas a estabilidade dos hábitos ou dos costumes são paradoxais (conforme Halbwachs). Em Tarde, a memória conserva a diferença da mesma maneira que em Bergson ela retém o tempo. A memória não se conserva pela identidade ou da unidade, mas através da repetição. O hábito (ou o costume), produto da repetição, tem uma dupla face: uma que encarna a diversidade e outra que a imobiliza,que a fixa.

A invenção ou o presente que cria
Para Lazzarato, sem repetição-rotina o mundo seria um caos. A imitação é, ao mesmo tempo, uma condição de produção e a reprodução da rotina que permite a criação de novas bifurcações. A associação entre uma lembrança e uma impressão nova é o que Tarde chama de nova combinação. Para Halbwachs o reconhecimento e a rememoração em Bergson é uma simples reprodução, ao passo que em Tarde eles são uma nova criação. Para Tarde, a imitação e a invenção, como as duas memórias do indivíduo, procede a partir da diferença em dois sentidos: pode-se imitar o que distingue o que diferencia e por outro lado, a invenção é uma criação de uma nova diferença.

A linguagem como memória social
Para Tarde a linguagem representa uma forma de memória coletiva. Para Lazzarato, Halbwachs atribui a Bergson uma relação de oposição entre memória e linguagem. Para ele, tanto Tarde quanto Bergson defende a linguagem como uma forma de conservar as lembranças, mas que permite desenvolver a memória que as criou. A linguagem aumenta a potência porque libera a memória da ação finalizada. A linguagem é a principal categoria da lógica social porque satisfaz o desejo de contribuição, de composição, adaptação das crenças e dos desejos. A linguagem é a matéria prima da invenção e da imitação, aumenta a potência de ambas. A linguagem, é, segundo as palavras de Tarde, o espaço social das idéias. Halbwachs percebeu a diferença que consiste em considerar a memória somente como qualquer coisa constituída e a introduz nas correntes de memória potencial. Segundo Lazzarato, o fluxo das crenças e desejos são como forças constitutivas logísticas da língua e de todo campo social. Lazzarato faz uma crítica ao estruturalismo, principalmente de Toni Negri, pois para ele, as palavras não são somente elementos de uma estrutura, mas as noções que exprimem um sentido. Tarde, ao contrário do estruturalismo, desenvolve uma concepção performativa da linguagem. A linguagem não tem somente uma função informacional e comunicativa, mas ilocutória. A linguagem é inseparável da potência que ela produz, das vontades (desejos) e das crenças. Para Tarde, os linguistas deveriam estudar a linguagem como uma força social, pois ela é constitutiva do tempo e da memória. Para Tarde, a questão não é opor linguagem e duração, memória social e memória individual, como pensa Halbwachs, mas saber do que elas são feitas para se reproduzir e criar algo novo. Para Tarde, governar, falar, produzir economicamente implicam em dirigir as correntes de fé e de vontade, dirigir as formas sociais da memória.

É preciso defender a sociedade das instituições
A lógica é, para Tarde, uma necessidade suprema do indivíduo e da sociedade. O problema da lógica social é sobretudo sobre as gramáticas, as legislações, as organizações do trabalho. A lógica social e a lógica individual não são regidas por nenhuma pretensão de verdade. Sem as correntes de memória, as instituições são mortas. Na teoria de ação proposta por Tarde a história não contém nenhuma racionalidade predeterminada, nenhuma lógica, como na dialética. A história é uma sucessão e uma acumulação de eventos a-históricos, de invenções.

As representações e as crenças
Para Lazzarato, Tarde diferencia de Durkheim no conceito de crença e representação. Para Tarde, há diferença entre crença e representação. A representação diz respeito ao sujeito e as crenças aos modelos de existência. A sociologia é, para Tarde, uma psicologia coletiva que se distingue da piscologia como objeto da mentalidade do indivíduo. Para Durkheim é a memória que torna possível e caracteriza a via psíquica. Tanto Bergson quanto Tarde não reduzem nunca a via psíquica às representações atuais. Halbwachs termina por abolir a memória, atribuindo a conservação das representações às instituições sociais. Durkheim para legitimar a existência de uma via inconsciente emite a hipótese da existência de centros de consciência secundária. Gabriel Tarde critica a redução da vida psíquica à representação. Não é suficiente distinguir entre individual e coletivo porque há uma vida impessoal, molecular, infralinguística tanto no indivíduo como na sociedade. A crença e o desejo não são do nível de representação, uma vez que são forças infrarepresentacionais, da mesma maneira que não se trata do nível linguístico mas infralinguísticos. A ação social, tal como entende Tarde, consiste num processo de institucionalização e desinstitucionalização contínua. A passagem do inconsciente ao consciente, do molecular (cerebral e social) ao molar (cerebral e social) e a passagem inversa, o consciente, o molar e o social que descem no inconsciente se fazem por imitação e por ação de forças constitutivas do desejo e da crença. A representação individual é que separa o molar do molecular, o consciente do inconsciente, o sujeito da vida impessoal, pre-individual e afetiva, atual e virtual. A representação coletiva, da mesma maneira, separa a multiplicidade das forças moleculares e infinitesimais que agem na sociedade, nas instituições. Durkheim e Tarde têm concepções diferentes da sociedade: para Durkheim como totalidade e como instituição, para Tarde como relação entre as instituições e as forças infra-institucionais.

Trabalho e criação
Segundo Lazzarato a grande contribuição de Tarde para compreensão do fenômeno econômico é ter introduzido a memória como potência constitutiva da quantidade social e econômica, como constituição do tempo e da diferença. Não o tempo como medida, como em Marx, mas como potência de constituição. É através da memória que se pode apreender o conceito de atividade, ação, porque ela é, ao mesmo tempo, hábito, rotina e poder de criação. É a memória que explica a dis

Memória Social I. Seminário Pierre Nora

por Tiago Cesar Silva, Sabrina Dinola e Grasiele B. R. Monteiro


O autor a ser discutido tem sua carreira iniciada na década de 50, quando
ingressou no mundo acadêmico como aluno de filosofia de Lycée Louis-le-Grand,
tendo posteriormente, em 1958, se graduado em licenciatura em História, disciplina
a qual cedeu importantes contribuições teóricas, aliados aos seus conhecimentos
com os questionamentos filosóficos adquiridos. A linha de pensamento de Pierre
Nora se confunde com o surgimento do que chamamos hoje de “Nova História”. Esta
surge na França, tendo seu embrião lançado por Marc Bloch e Lucien Febvre em
1929.

Esta nova forma de proposição da História chama-se Escola dos Annales.
Para esmiuçar ainda mais, podemos dividi-la em 3 fases. A primeira, sendo
extremamente radical, renega toda a História narrativa, a qual os historiadores da
época eram adeptos. Esta fase durou de 1920 a 1945. A segunda fase se preocupa
com os conceitos utilizados, tendo por função ampliar os conhecimentos e difundilos.
Esta fase, que teve como líder Fernand Braudel, além de resignificar os
conceitos de estrutura e conjuntura, visava também a aplicação de uma metodologia
histórica, almejando aumentar sua credibilidade diante das outras ciências.
Finalmente a terceira fase, que não possui um “líder” por assim dizer, inicia-se após
1968. Com o grande boom desta linha de pensamento, ela mais gerava
questionamentos (tanto externos quanto internos) do que criava metodologias. 1
Voltando a Nora, este paralelamente seguia uma carreira editorial. Ingressou
em 1964 na Julliard, onde criou a coleção de livros de bolso "Archives". Em 1965,
juntou-se à Gallimard: a prestigiada editora, já bem instalada no mercado da
1 BURKE, Peter. A Escola dos Annales: A revolução francesa da Historiografia. São Paulo:
UNESP, 1997. p. 12.
2
literatura, desejava desenvolver o seu setor das Ciências Sociais. Foi Nora que
desempenhou esta tarefa pela criação de duas importantes coleções: a
"Bibliothèque des sciences humaines" em 1966 e a "Bibliothèque des histoires" em
1970, além da coleção "Témoins" (1967). 2
A relação de Nora com os Annales não ficou só em sua ideologia, mas este
atuou de forma direta. Fazendo uma breve cronologia do “embrião” da Escola, em
1972, Fernand Braudel (líder da segunda geração) passou à próxima geração de
historiadores a responsabilidade de reescrever as tendências historiográficas
contemporâneas, tendo assumido aqui Jacques Le Goff, tornando-se diretor da
École des hautes études en sciences sociales, que era uma reorganização
institucional da própria Escola. Este cargo foi de Francois Furet entre 1975 e 1977,
tendo sido substituído pelo próprio Nora.
Os questionamentos que Pierre Nora expõe em suas obras são dos mais
variados e complexos. Vão desde a expressão cunhada pela sua escola de
pensamento – “do porão ao sótão”, que reflete sobre a história vista de baixo, ou
seja, a História contada pelos grupos marginais, até suas relações entre ideologias,
reprodução cultural e imaginário social, o que na verdade o aproxima de outro
pensador, Georges Duby. 3
É possível perceber reflexos e influências de diversos outros autores nas
obras de Nora. Dentre estes, podemos destacar Roger Chartier. Este enfatizava que
não era possível estabelecer relações exclusivas entre grupos distintos, voltando-se
assim para a influência cultural entre as práticas culturais partilhadas por vários
grupos, individualmente. Sendo esta linha já tendo sido apontada anteriormente por
Pierre Bordieu e Michel De Certau, podemos reconhecer que estes três pensadores
foram de suma relevância para a concepção da principal obra de Pierre Nora: Les
Lieux de Mémoire.
Tendo sido o organizador desta obra em três volumes que atravessou quase
uma década para ser concluída (1984 a 1993) e elencou diversos pensadores de
escolas diferentes dissertando sobre o mesmo tema, Nora dirige os livros para
temas como a bandeira francesa, a Marselhesa, o Panteão, dentre outros, tendo
como objetivo a preocupação com a apropriação e transformação dos principais
empreendimentos históricos franceses. Discute ainda como a imagem do passado é
2 Internet: Wikipedia. Verbete: Pierre Nora. Acessado em 02/04/2010.
3 ARIES, Philippe; DUBY, Georges. A História da Vida Privada. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.
3
representada nos textos escolares, marcando assim um retorno às idéias de
Halbwachs sobre a estrutura social da memória, tema que já havia inspirado Marc
Bloch, mas que tinham sido relevadas pelos historiadores das gerações seguintes.
Desta forma, ele demonstra que a forma como o presente usa o passado é uma
questão latente, e o faz expondo a abordagem antropológica, visto na amplitude
reflexiva percebida no fato da obra ter sido concebida por historiadores franceses
escrevendo sobre a história da França. 4

Além destes, podemos destacar diversos outros autores que contribuíram
para a discussão de Pierre Nora. Destes, iniciaremos com Michel Foucault. Este nos
diz que mais importante do que responder “o que é poder” é importante refletir sobre
seus mecanismos, seus efeitos, suas relações em diferentes níveis da sociedade. 5
Aproximando com a proposta deste trabalho percebemos que, segundo este autor, a
memória é utilizada como forma de justificar o poder dentro de um meio social, o
que, afinal, é a função do que Nora chama de “lugar de memória”. Afinal, “Memória e
Poder exigem-se”. 6

Passemos agora a Henri-Pierre Jeudy. Este afirma que a idéia de patrimônio
evidencia que, se para o individuo é impossível viver sem memória, para uma
coletividade a convivência constante com seu passado é o necessário ponto de
identificação de suas ações no presente. “A cultura não se encontra mais na cabeça
das pessoas, mas diante delas, composta de um número enorme de signos a serem
descobertos e interpretados, ou ainda, revividos como expressão de uma tradição
incontestável”. Jeudy enfatiza o perigo da perda dos traços culturais ainda atuais,
vivos, que comprovam um passado que não estaria verdadeiramente morto, e
considera que as representações das diferentes culturas se apresentam como
objetos a serem percebidos, lidos e estudados.

Para a imaginação histórica, há a necessidade de dar sentido ao material do
passado, ao material morto ou às ruínas. Tais ruínas estão sempre presentes nas
construções da memória, de tal sorte que não representam a degradação ou perda
de uma possível identificação cultura; ao contrário, fundam o imaginário histórico.
4 BURKE, Peter. A Escola dos Annales: A revolução francesa da Historiografia. São Paulo:
UNESP, 1997. p. 100.
5 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. p.174
6 CHAGAS, Mário. Memória Política e Política da Memória In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario
(org.). Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.141.
4

Desse modo, interroga Jeudy: “O que seria da memória sem o esquecimento? O que
seria de um monumento sem ruína? E o que seria de um trabalho de luto sem o
sonho?”.

Jeudy descarta fundamentalmente o sentido fragmentado dos patrimônios
culturais e o papel das instituições de memória na preservação dessas culturas.
Para ele, a memória está sempre em gestação e deve ser conquistada, uma vez que
foi ordenada pela distribuição e pela função dos monumentos históricos. A questão
fundamental é a atribuição dessa memória, em que a designação dos atributos é tão
individual que é pode afirmar que “uma memória não se amolda necessariamente a
uma ordem cronologia. [...] ela pode ser eruptiva, projetiva, confusa, contraditória. As funções culturais das memórias ditas coletivas não correspondem senão a uma maneira possível, dentre outras, de estabelecer uma ordem dinâmica dos traços mnésicos”.

A memória é um fator de ligação psíquica coletiva em uma sucessão que visa
neutralizar os efeitos de um trauma; só quando a memória se tornar objeto de uma
gestão cultural é que pode produzir a aparência de ordem. Instituir, portanto, é
ordenar. Mas a memória possui também algo de acidental, de circunstancial, já que
não é apenas meio de consagrar a continuidade, a duração, ou ainda de criar
vínculos. A objetividade da memória, mesmo que representada pela interseção do
objeto da memória, mesmo que representada pela interseção do objeto com a
imagem e com o relato, não garante e reconstrução das culturas, apenas permite a
geração de uma nova imagem cultural, passível de assimilação ou de esquecimento.
7
Resumidamente, podemos dizer que para Jeudy o patrimônio demonstra à
coletividade seu traço comum. Apesar de este autor tocar na questão da
objetividade da memória que não chega a mencionar, a relação necessária entre
objeto, imagem e relato nos conduz ao discurso de Pierre Nora, em seu discurso
sobre relação triádica. Todavia, ao afirmar que a memória não existe fisicamente,
somente em pensamento, e que esta transmissão ocorre através da oralidade,
automaticamente nos remetemos ao conceito de “meios de memória”.
Retornemos agora a outro autor já apresentado: Jacques Le Goff. A sua
influência não fica somente pelo campo institucional e a ligação comum com a
7 DODEBEI, Vera. Memórias, circunstâncias e movimento. In DODEBEI, Vera; GONDAR, Jô. O que é Memória Social? Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria / PPGMS – UNIRIO, 2005. p.48.
5

Escola dos Annales. Em seus escritos, Le Goff não só destaca o interesse da
Memória pela História como estimula o estudo da primeira como forma de servir ao
presente e ao futuro, construindo uma relação simbiótica entre ambas. 8
Agora, vamos partir diretamente para a discussão do autor em si mesmo. O
conceito de lugares de memória busca responder ao problema da perda das
identidades nacionais e comunitárias que garantiam a conservação e a transmissão
de valores, e que denomina meios de memória. Criamos lugares para ancorar a
memória, para compensar a perda dos meios de memória, como um modo de
reparar o dano. Subentende-se aqui o lamento pelo esfacelamento das tradições
assim como crença de que devemos contrabalançar essa perda e algum modo. Dito
de outro modo, o argumento de Nora é compensatório, e se baseia na idéia de que
os modos de vida perdidos são os modos certos de viver, ou, ao menos,
“memoráveis”.

Este leva em conta o tempo em sua análise, porém o concebe como
degradação: os lugares de memória são construídos porque perdemos os meios de
memória, sendo preciso reparar o dano. O discurso de Nora é um discurso de perda;
há nele uma dificuldade de positivar as mudanças do tempo, mudanças nos modos
de sentir, perceber e lembrar que caracterizam as sociedades contemporâneas,
como se nos restasse apenas a compensação nostálgica de uma situação
originária.9

Ao fazer um paralelo entre memória e história, supõe que essa relação
triádica (objeto, imagem e relato) conduz não ao conceito de memória, mas sim ao
conceito de história. Como afirma Nora, fala-se “tanto de memória porque ela não
existe. Há locais de memória por que não há mais meios de memória”. Para Nora, se
ainda habitássemos nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar
lugares e, por conseguinte, não haveria lugares porque não haverá memória
transportada pela história, e a memória seria considerada global, atual, permanente
ou realizável e partir da necessidade individual transformá-la em história.
Retornando a Jeudy, que usa a expressão ruínas, Nora reconhece que os lugares
de memória são lugares de “restos”. Em suas palavras: “museus, arquivos,
cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais,
8 LE GOFF, Jacques. Memória. In História e Memória. Campinas: Unicamp, 2003. p.422-476.
9 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n.10.
São Paulo: PUC/SP, 1993.
6

monumentos, santuários, associações são os marcos testemunhas de uma outra
era, das ilusões da eternidade”. No discurso desses dois autores, portanto, pode-se
vislumbrar um indicador de que a memória só existiria efetivamente no imaginário. 10
Por uma questão prática, vamos analisar superficialmente os textos que
serviram como base para este ensaio, em sua ordem de publicação. Comecemos
com a revista Projeto História. Lançada em 1993, o texto tem como base o diálogo
entre memória e história. Inicialmente a história tinha como seu foco de análise o
“todo”, e acabava passando por cima da memória. Todavia, ele tenta justificar isto
pelo grande volume do que deveria ser lembrado, além da rígida metodologia
histórica. Ao longo do texto, ele busca esta redenção da história, alegando que esta
é o ontem, enquanto a memória é o hoje, observando, por exemplo, que as diversas
comemorações que as sociedades possuem é uma prova da ascensão da memória
e que sem ela não saberíamos o que guardar.

O próximo texto está dentro do livro Memória e História. Lançado em 1998,
este artigo busca uma releitura por ele mesmo sobre a obra “As linhas da memória”.
Ele tenta explicitar ao longo do texto a metodologia que utilizada para a confecção
do mesmo, além dos referenciais teóricos que ele lançou mão e os que ele renegou.
O texto seguinte, “Memória: da liberdade à tirania”, é proveniente de um
seminário ocorrido no ano 2000. Neste texto, Nora tem como base a discussão da
memória enquanto formadora de bases e identidades. Ele procura expor que com a
libertação e reconhecimento da memória, a mesma ganha grandes proporções
devido ao alto número de reivindicações de reconhecimento das mesmas.

Finalmente, o texto de Armelle Enders, “As linhas da memória, 10 anos
depois”, vem com uma dura critica a Nora, seus conceitos e metodologias, com base
em afirmações de “vulgarização”, “imprecisão”, dentre outros. Assim, ela rejeita a
simplicidade que Pierre Nora tenta buscar, alegando ainda que o que ele utiliza é
uma releitura de algo que já era praticado.

De todo modo, a contribuição de Nora com seu conceito de “lugar de
memória” é o carro-chefe de sua obra. É um conceito complexo, apesar do que sua
simplicidade aparente sugere. Indo um pouco mais fundo nesta discussão, podemos
dizer que são estes lugares que possuem efeito nos três sentidos da palavra, de
forma simultânea, porém em graus diversos: material, simbólico e funcional. Um
10 DODEBEI, Vera. Memórias, circunstâncias e movimento. In DODEBEI, Vera; GONDAR, Jô. O
que é Memória Social? Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria / PPGMS – UNIRIO, 2005. p.49.
7
depósito de arquivos, por exemplo, cuja aparência nos remete a uma categoria
material, pode também ser contemplado com uma aura simbólica se a imaginação
assim nos permitir. Um manual de aula que possui uma característica puramente
funcional se for objeto de um ritual pode também entrar na categoria “lugares de
memória”. Já um momento repleto de uma significação simbólica, como um minuto
de silêncio, se materializa através da unidade temporal e dedica-se a remissão de
uma lembrança.

O lugar de memória é um lugar duplo: fechado sobre o seu nome e
identidade, mas aberto devido à extensão de suas significações. Para ser concebido
é necessária, inicialmente, a existência de uma vontade de memória através do
objeto digno de lembrança, que pode se produzir através de fontes diretas,
produzidas pela sociedade voluntariamente para serem reproduzidas como tal, como
uma lei, uma obra de arte e fontes indiretas, testemunhos deixados em uma
determinada época sem duvidar de sua utilização futura pelos historiadores. Sem
essa intenção de memória os lugares de memória serão lugares de história. 11

CONCLUSÃO: debate produzido durante a apresentação do seminário.
Após a análise teórica sobre o tema memória e história na obra de Pierre
Nora e a apresentação do seminário em sala de aula, concluímos que houve um
consenso em relação à importância do autor e de suas reflexões no âmbito da
memória, história e dos lugares de memória. Acreditamos que a repercussão da
obra de Nora surpreendeu o próprio autor. O sucesso da coleção ultrapassou a
fronteira científica, de forma que os lugares de memória passaram a ser confundidos
com lugares comuns. Fatos como este, motivaram a execução do projeto Les France
que se constituiu numa tentativa de re-apropriação da idéia de lugares de memória.
Foi abordada durante o seminário a questão da dicotomia entorno dos conceitos de
história e memória de Nora, como se a história fosse algo nocivo, uma ameaça à
memória, entendida como “verdade”, ou ainda como “sagrada”.
11 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo, Projeto
História – Revista do Programa de Estudos Pós graduados em História e do departamento de
História. V. 10, 1993.
8
Um outro ponto observado foi que os historiadores ignoraram durante muito
tempo a história. Isso caracteriza o que foi denominado durante a discussão como
uma disputa de poderes. Neste momento, foram citados outros exemplos deste tipo
de disputa no mundo acadêmico. Ainda foi observado, que as idéias de Nora em
relação às questões polêmicas que envolvem os conceitos de história e memória, as
quais eram quase sempre interpretadas como se o autor renegasse a história, foram
de certa forma, equivocadas à medida que o próprio autor se defende como sendo
ele mesmo um historiador não podendo portanto, renegar a história.

No entanto, ressaltamos que há no discurso de Nora uma dificuldade em
positivar as mudanças ocorridas nas sociedades contemporâneas, levando-o a uma
'nostalgia' de uma suposta ‘situação original’. O passado é visto como algo que
estaríamos desligados para sempre e sua apropriação só seria possível de forma
'artificial'. Isso, de certa forma, nos remete a Benjamin. No trabalho de Benjamin,
uma nostalgia também é percebida, porém, diferente de Nora, Benjamin observa o
passado não como algo perdido, mas como algo que nos libertaria da 'urgência' do
mundo moderno, ou seja, como uma forma de escapar da 'presentificação'.
As discussões em sala terminaram com a reflexão de que as pessoas
atualmente se interessam mais pelo passado do que pelo futuro. Enfim, destacamos
ainda a relevância do conceito de lugares de memória de Pierre Nora, considerando
que a sua obra possui uma enorme dimensão material, temporal, social e científica.

GLOSSÁRIO
Lugar de Memória: Local onde a memória de um determinado tempo se
encontra, presa e estagnada em seu próprio tempo. Na prática, Pierre Nora chama
museus, arquivos e comemorações de “lugares de memória”, pois são estes os
locais que são detentores físicos do passado.
Meios de Memória: Seu significado relaciona-se com o dia a dia, com a
transmissão da tradição e da cultura através – e somente – da oralidade. Quando
algo não está mais presente nos meios de memória, no dia-a-dia, ela é levada a um
local quase de adoração nostálgica ao tempo que passou.
9
Relação Triádica: É a relação entre o objeto, imagem e relato. Podem ser
utilizados igualmente em uma conceituação individual. Na visão de Nora, estes três
itens se complementam ao valorizar a memória em si, celebrando, grosso modo, ao
seu próprio esquecimento. Para ele, é uma relação necessária para o desfecho da
memória em seu jazigo, ou seja, no “Lugar de Memória”.
História Totêmica: Sociedade como ela é; cosmos; ancestralidade; grandes
acontecimentos; figuras do passado; sociedade tradicional X História crítica – não
fala de como o mundo “é”, mas de transformações; busca a “verdade absoluta”.
Memória Verdadeira: gesto, hábito X Memória transformada em história -
“DEVER”; preocupação com vestígios, resquícios; preservação integral
(presente/passado).
Fim da história-memória: É a multiplicação das memórias particulares (cada
um buscando sua própria história). A memória vem do exterior e a internalizamos
como obrigação individual, pois essa deixou de ser uma prática social.

REFERÊNCIAS
ARIES, Philippe; DUBY, Georges. A História da Vida Privada. São Paulo: Cia. Das
Letras, 1991.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales: A revolução francesa da Historiografia. São
Paulo: UNESP, 1997.
CHAGAS, Mário. Memória Política e Política da Memória. In: ABREU, Regina;
CHAGAS, Mario (org.). Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
DODEBEI, Vera. Memórias, circunstâncias e movimento. In DODEBEI, Vera;
GONDAR, Jô. O que é Memória Social? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005.
Enders, Armelle. Le lieux de mémoire, dez anos depois, Estudos Históricos, v. 6, n.
11, p. 128-137, 1993.
10
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: ______. História e Memória. Campinas: Unicamp,
2003. p.422-476.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História,
n.10. São Paulo: PUC/SP, 1993.
______. In: WIKIPEDIA. Disponível em: .
Acesso em: 02 abr. 2010
______. Memória: da liberdade à tirania, In: SEMINÁRIO “Memory and History in
French Historical Research During the 1980’s and 1990’s. África do Sul, 12- 19 de
agosto de 2000.