lunes, 24 de mayo de 2010

Memória SOcial II. O conceito de memória social em Halbwachs e a crítica de Andreas Huysen

Por Eladir Santos

O conceito de memória social em Halbwachs e a crítica de Andreas Huysen

Iniciando por Halbwachs

• Halbwachs nasceu em Reims, em 1877, viveu em Paris, no início do século XX e foi um profundo conhecedor do debate filosófico da época.

• Durante 7 anos foi discípulo de Bergson, no Liceu Henrique IV. Neste período esteve maravilhado com a Filosofia.

• No entanto, logo se sentiu mais cientista do que filósofo e rompeu com sua formação ao ocupar-se do estudo das ciências aplicadas na sociedade. Estudou Direito, Economia Política, Matemática e Estatística.

• Conheceu Durkheim, tornou-se amigo do economista socialista François Simiand e de outros sociólogos. Neste período, Halbwachs tateava procurando abrir para si um caminho, um método e o objeto de seu estudo que era a sociedade. Por isso ele foi procurando estabelecer distância de tudo que considerava impreciso, dogmático ou por demais, empírico.

• Para compreendermos o conceito de “memória social” de Halbwachs é interessante observarmos que sua teoria da memória está articulada a uma abordagem epistemológica, ou seja, a uma teoria do conhecimento que fazia parte do estudo da estrutura material dos grupos e populações. Esse era o seu ponto de partida.

• Halbwachs fez parte de uma geração de intelectuais que procurava desenvolver uma ciência aplicada na solução de problemas sociais. A crença no progresso democrático e social fazia parte de seu mundo e à ela foi acoplada a defesa a defesa do espírito coletivo. A memória para ele era um fator agregador da sociedade. O conceito de memória social em Halbwachs deve ser compreendido a partir do vínculo do autor com as correntes reformistas do socialismo de sua época, bem como com as teorias durkeinianas.

• Esse interesse ele manifestava em suas opções de estudo. Em exercícios de por em ordem, através dos números, a matéria social e quantificar os acontecimentos sociais.

• No Direito – sua tese de mestrado foi sobre a expropriação e preços dos terrenos em Paris.

• Na Estatística – seus escritos relacionados a esse ramo foram Ensaios sobre Estatística, Cálculo de Probabilidades ao alcance de todos e A espécie humana e o ponto de vista dos números.

• Não é possível observarmos o conceito de “memória social” adotado por Halbwachs sem nos remetermos a sua obra de 1925, Os quadros sociais da Memória. É neste primeiro livro escrito sobre o tema onde aparecem delineações claras sobre o que seria uma “sociologia da memória” Nela, Halbwachs dialoga com a psicologia, sobretudo com Freud, com a filosofia, principalmente com Bergson e constrói uma abordagem alicerçada na sociologia de Durkheim. Pela primeira vez, a memória era analisada de forma sistemática observando-se o seu caráter social.

• O conceito de “memória social” é mais um dos pontos de seus escritos nos quais é enfatizada a rejeição de que a natureza humana fosse animada por impulsos subjetivos ou egoístas.

• A memória, até então, amplamente reconhecida como sendo determinada por questões subjetivas, passava a ser objeto de estudo como fato social.

• Na sua acepção só se pode entender os atos de lembrar e esquecer se percebermos suas associações com o todo social.

• O termo “quadros sociais” era naquela época bastante utilizado pela crítica literária com o significado de um sist4ema de referências temporais. Na obra de Halbwachs há uma semelhança semântica, porém a noção é mais ampla. Ele associa quadros sociais a um “sistema de representações” que podem ser de lógica, de cronologia ou topografia, que antecipam a lembrança fornecendo assim um sistema global de localização do passado no presente.

• O texto que aqui nos serve de base para apreendermos o conceito de memória social em Halbwachs é o primeiro capítulo de Memória Coletiva. Memória Coletiva foi tirado dos papéis deixados por Halbwachs ao morrer em 1945. São fragmentos resultantes da continuidade de sua pesquisa que o autor realizou no decorrer da Segunda Guerra.

• As relações da memória e da sociedade havia se tornado o centro do seu pensamento. Neste livro, Halbwachs retoma as preocupações quanto à institucionalização social da memória, mais uma vez tratando-a como dado objetivo da realidade social.

• Vários exemplos são citados com o objetivo de reafirmar algumas posições já indicadas em Os Quadros Sociais de Memória e explicitar suas teses de que a memória é constituída por imagens, esquemas do passado, aos quais não temos acesso. Os indivíduos não recordam sozinhos. As lembranças são frutos destes esquemas ou quadros socialmente adquiridos. O autor rejeita a ideia de que haja criação ou inspiração no ato de rememorar. O que existe é uma complexa combinação de variados quadros adquiridos socialmente no percurso do indivíduo.

• Halbwachs inicia o capítulo 1 de Memória Coletiva evocando o depoimento algo que não tem sentido senão em relação a um grupo do qual se faz parte. O depoimento supõe um acontecimento real outrora vivido em comum. Halbwachs fala do depoimento do “eu” que se lembra. O primeiro testemunho ou depoimento ao qual podemos recorrer será sempre o nosso e ele tem aspectos vivos da lembranças de uma comunidade. O “eu” depõe e dá testemunhos para a construção da memória no presente.

• Halbwachs mostra através dos exemplos que ilustram o seu texto que a memória individual existe, mas que ela está enraizada dentro dos quadros sociais. Ela está situada na encruzilhada das redes sociais diversas nas quais nos engajamos. Nada escapa à trama da existência social.

• Sobre a possibilidade de uma memória estritamente individual, Halbwachs nos mostra através das reflexões sobre as memórias da infância e posteriormente sobre as memórias dos adultos que todas são eminentemente sociais.

• As da infância porque são impregnadas do que resulta do grupo do qual a criança faz parte mais intimamente que é a “família”.

• As de adulto porque devem ser compreendidas dentro de quadros sociais de pensamentos e vivências dos grupos sociais aos quais pertencemos.

• Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e este ponto de vista muda conforme o lugar que o indivíduo ocupa. E este lugar, por sua vez, muda segundo as relações que o indivíduo mantém com o grupo social.

• O que temos dentro do quadro de nossas lembranças antigas são adaptadas do conjunto de nossas percepções atuais.

• Dá o exemplo de quando retornamos as uma cidade onde já estivemos anteriormente. Aquilo que percebemos nos ajuda a reconstruir um quadro em que muitas partes estavam esquecidas.

• Halbwachs considera que isso é uma espécie de “confrontação” de vários depoimentos que concordam no essencial apesar de divergirem em alguns pontos. Esse essencial é que nos permite reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-lo.

• Se pudermos nos apoiar também sobre a lembrança dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa lembrança será maior.

• Halbwachs observa que, na realidade, nunca estamos sós. Quando, por exemplo, passeamos sozinhos por uma cidade como Londres, carregamos conosco várias pessoas representadas ali pelas experiências sociais que vivenciamos e pelos conhecimentos que acumulamos vivendo em sociedade.

• Halbwachs explica, através de exemplos, que o esquecimento ocorre pelo desapego de um grupo, pois, para lembrar há necessidade de uma comunidade afetiva. Os indivíduos utilizam imagens do passado enquanto membros de grupos sociais. O desapego desses grupos colabora para o esquecimento.

• Importante esse aspecto da teoria de Halbwachs relativa ao esquecimento entendido como o desapego, o desengajamento do grupo. Nós que utilizamos a metodologia da história oral, em nossas pesquisas sobre organizações e instituições percebemos muito esta faceta do esquecimento. A pesquisa que realizei para minha dissertação de Mestrado teve como principal objetivo buscar e analisar memórias construídas por antigas lideranças do movimento popular. As memórias foram mais claras, mais consistentes sobre os fatos vivenciados quando a liderança entrevistada não havia se desengajado efetivamente e afetivamente do movimento popular. Aquelas que haviam se afastado, que conforme palavras delas mesmo, “foram cuidar de suas vidas longe da participação política”, apresentaram poucas memórias, no decorrer da entrevista. Por várias vezes, declararam não conseguir lembrar-se de fatos nos quais, inclusive, tiveram grande destaque conforme depoimentos de seus companheiros de luta.

• Podemos sintetizar o conceito de memória social de Halbwachs em 3 afirmações:
o As memórias só podem ser pensadas em termos de convenções sociais
o A abordagem a estas convenções se dá no mundo empírico observável
o O passado que existe é apenas aquele que é reconstruído continuamente no presente.

• Como na aula anterior nós estudamos o conceito de memória em Bergson considero que é interessante que verifiquemos os pontos de contato e as divergências entre os dois teóricos.
o Os pontos de semelhança:
 Ambos rejeitam a memória como atividade meramente física, mensurável em laboratórios
 Ambos criticavam a tentativa da psicologia de explicar a memória a partir de experimentos físicos e científicos com o corpo humano

 Ambos trabalharam com a noção de que a linguagem e a razão são capazes de nomear estados de consciência

o As divergências
 Para Bergson a memória está relaciona ao espírito em contraposição ao avanço das investigações biológicas.

 Para Halbwachs a memória está relacionada aos grupos sociais. Ele defendeu a ideia de que as imagens não estão relacionadas ao espírito humano ou a uma consciência interna pura. Elas estão relacionadas à representações coletivas estabelecidas por grupos sociais.

 As famosa representação do cone elaborada por Bergson, que vimos na aula anterior, enquanto armazenamento de memórias passadas estaria errada, segundo Halbwachs, pois, se os indivíduos guardassem em suas terminações neurológicas todo o seu passado, eles seriam sempre capazes de reconstruir qualquer aspecto do passado através de recordações ou sonhos.


• Algumas conclusões:
o Halbwachs entendeu que a tarefa da sociologia seria mostrar que a materialidade da memória não estava no corpo e sim na sociedade.
o A relação entre os indivíduos e os quadros sociais foi compreendida fundamentalmente como sendo uma relação de manutenção de estruturas já dadas.

o Halbwachs entendeu a memória como fator agregador da sociedade. Colocou a memória no centro de um sistema próprio de interpretação da vida em sociedade. Fica explicita a sua filiação à sociologia de Durkheim quando apresenta-nos a memória como algo que propicia a coesão social e a continuidade da ordem social. Não verificou a face conflituosa da memória.

o Halbwachs ao radicalizar no sentido de apresentar o fato de que a memória não estava no corpo e sim na sociedade, eliminou qualquer aspecto relacionado ao corpo, à mente e aos indivíduos. Para dar materialidade às construções sociais eliminou a possibilidade de existência de um inconsciente. Dessa forma, para ele os sonhos não são resultado de conflitos e sim imagens coletivas desconexas.
o Bérgson ____ intuição/ subjetivo
Conflito entre memória X espírito

o Freud ____ sistemas psíquicos
Conflito entre consciente X inconsciente

• O conceito de memória coletiva de Halbwachs, além de ter sido inaugural no campo, ele tem interessado até hoje teóricos e ensaístas que se preocupam com a memória. A obra de Halbwachs como discurso fundador ainda exerce uma centralidade neste campo do conhecimento. Qualquer estudo que se proponha a entrar no campo da memória social há de, em algum momento, mencionar a obra de Maurice Halbwachs. Seja para se opor a ela ou para reconhecer-se herdeira da obra do sociólogo, ainda que seja com algumas ressalvas.
o Os estudos de Pierre Nora, na década de 1970, chamaram atenção para o legado de Halbwachs. Ele reuniu um conjunto de historiadores para construção da coleção Lugares de Memória. A ideia era buscar uma certa topografia nas representações coletivas do passado nacional francês. Isso está diretamente associado às teses de Halbwachs. Nora trabalha com a ideia de que tais lugares foram criados socialmente quando a memória do grupo já não era capaz de propiciar a perpetuação daquele passado através da oralidade.

o A socióloga Mary Douglas que editou o trabalho póstumo de Halbwachs Memória Coletiva nos Estados Unidos aproveitou-se do conceito para analisar as instituições e a forma como a memória coletiva atua sobre as instituições.

Memória e Espaço. Pierre Bordieu. Sobre o Poder Simbólico e outros...

Pierre Bourdieu
Eladir Santos

• É sempre importante que se apresente o autor, mas no caso de Pierre Bourdieu é, sobretudo, importante pelo fato de que sua trajetória de vida foi responsável por muitas de suas escolhas relacionadas aos seus objetos de estudo. Conhecer essa trajetória é importante para compreendermos suas análises e seus quadros conceituais.
• Bourdieu nasceu em 1930 e morreu em 2002. Nasceu em, Denguin, uma província dos Pirineus-Atlântico, oeste da França, uma região que colocava seus habitantes, nos anos 50 e 60, quando estes chegavam a Paris, em uma situação semelhante aos que se originavam das colônias.
• Fez seus estudos superiores em filosofia, em Paris e então, a partir daí teve que realizar algumas rupturas para satisfazer às exigências da instituição escolar. A primeira delas foi o abandono do sotaque e de muitas experiências adquiridas nos primeiros anos de vida. As suas origens o colocavam em uma situação de exterioridade objetiva e subjetiva com as instituições centrais da sociedade francesa, principalmente com o mundo intelectual. Bourdieu se considerava alvo de racismo social e, esse dado fez despertar nele certo tipo de lucidez relativa às estruturas da sociedade e aos processos sociais.
• Estabelece também rupturas com as correntes intelectuais dominantes nos anos 50, no campo da filosofia – dominava a fenomenologia, uma filosofia subjetivista que considera o fenômeno, isto é, aquilo que aparece para a consciência do sujeito, como a única realidade cognoscível. Bourdieu afasta-se para analisar a sociedade e o que nem sempre está consciente para os atores sociais. Desta forma vai tornando-se um sociólogo.
• Por último estabelece rupturas com o marxismo clássico e com aspectos da sociologia de Weber. No entanto esclarece, em muitos de seus escritos que o que pretende é consolidar conhecimentos dessas duas correntes sociológicas e repatriá-los, sem riscos de ingenuidade e simplificações das ideias.
• Sua contribuição teórica se articula em torno de dois temas recorrentes: mecanismos de dominação e a lógica das práticas dos agentes sociais num espaço social sem igualdade e repleto de conflitos.
• O percurso do campo de análise de Bourdieu dá-se das margens para o centro da sociedade moderna. Inicia pelo estudo das sociedades tribais, passando pelos sistemas de ensino, processos de reprodução, critérios de classificação, até as lógicas da distinção.
• Tem como proposta e preocupação a reorientação do olhar do pesquisador. Torná-lo mais atento aos processos de reprodução e às relações de poder neles contidas.

Livro O Poder Simbólico
• Os textos foram selecionados pelo próprio Pierre Bourdieu para uma edição em Portugal de 1989. Os editores portugueses sentiam a falta de publicações de Bourdieu, em Portugal, já que os textos que lá chegavam eram resultado de publicações brasileiras.
• Nestes textos selecionados há uma preocupação de Bourdieu em esclarecer o conjunto de seus instrumentos teóricos e sua metodologia. Neles ele apresenta o quanto o método e o teórico estão entrelaçados.
• Bourdieu, nesses textos, apresenta o processo de formulação de algumas de suas noções operatórias como os conceitos de habitus, reprodução, poder simbólico, capital, distinção, campo etc..
• São textos originados de artigos, conferências e seminários ocorridos entre 1960 e 1980.

Capítulo I
Sobre o Poder Simbólico

• O texto resulta de uma conferência dada na Universidade de Chicago em abril de 1973. Nele há a preocupação em dirigir as atenções para a percepção do simbolismo presente numa situação escolar e na própria conferência que se realizava.
• P.7. Procura mostrar que o poder simbólico é um poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Chega a essa conclusão a partir da elaboração de observações de como os sistemas simbólicos têm sido entendidos e apresentados tradicionalmente pelos teóricos do social.
• P.8. As primeiras observações que ele apresenta são as dos teóricos que entendem os sistemas simbólicos como “estruturas estruturantes”, isto é, como estruturas resultantes de subjetividades e consensos que vão se construindo ao longo da história. Estruturas que por sua vez constroem novas estruturas. Os kantianos e os neo-kantianos entendem os sistemas simbólicos desta forma, posto que dão atenção para o aspecto ativo do conhecimento numa reconstrução sistemática das condições sociais de produção desses sistemas.
• P.9. Os segundos teóricos apresentados são os que entendem os sistemas simbólicos como “estruturas estruturadas”. Diferentemente dos anteriores que privilegiam o modus operandi, isto é a ação sistemática atuando sobre as estruturas, os segundos privilegiam o opus operantum, o seja, o já realizado, o já estruturado. Os sistemas simbólicos, neste caso, não são como nos primeiros, instrumentos de conhecimento e construção do mundo. Eles são meios de comunicação em um dado sistema já estruturado. Exemplo disso é a representação que Saussure fornece à língua. Para ele a língua é um sistema simbólico com estrutura estruturada.
• Aproveitando-se desse conjunto teórico e pretendendo consolidar alguns pontos e rejeitar outros, Bourdieu elabora uma primeira síntese.
• P. 9. Os sistemas simbólicos como instrumentos de conhecimento e de comunicação só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. Eles supõem a existência de uma concepção homogênea de tempo e espaço que torna possível a concordância no mundo social, nas interações. E isso é o que já está estruturado. Os símbolos são instrumentos de conhecimento e comunicação e eles tornam possível a reprodução da ordem social.
• P.10. Após essa primeira síntese Bourdieu observa um outro caráter das produções simbólicas. Desta vez vistas como “instrumentos de dominação”.
• Nas duas formas anteriores de reconhecer-se os sistemas simbólicos o entendimento do mundo social se dá através das estruturas. Desta vez, Bourdieu observa aspectos funcionais das produções simbólicas. Funções que estão relacionadas com os interesses da classe dominante, com a divisão do trabalho entre as classes sociais, com a divisão do trabalho ideológico (manual/ intelectual).
• Neste aspecto reconhece-se a função de dominação dos sistemas simbólicos. Para Bourdieu esse aspecto possibilita que se entenda melhor a existência de uma violência simbólica e política que compõe a divisão do trabalho de dominação. Dessa forma verifica-se também o caráter ideológico dos sistemas simbólicos que são garantidores da reprodução da cultura dominante. As ideologias servem a interesses particulares que tendem a se apresentarem como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo.
• Dessa forma os sistemas simbólicos permitem a ocorrência de uma integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade no seu conjunto, posto que, há uma “desmobilização da classe dominada” através da legitimação da ordem estabelecida por meio de hierarquias e distinções que dissimulam as verdadeiras funções dos sistemas simbólicos.
• P.11. Neste ponto, Bourdieu elabora uma segunda síntese reunindo as três formas como são vistos os sistemas simbólicos: como estruturas estruturantes, como estruturas estruturadas e como instrumentos de dominação. Faz isso para concluir que com essas três formas os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumento de imposição ou legitimação da dominação de uma classe sobre outra. Verifica-se aí que as classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a sua definição do mundo social.
• Esse conflito se dá na vida quotidiana e o tempo inteiro. Nele está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima que quer dizer o poder de impor e inculcar instrumentos de conhecimento e expressão arbitrários que servem aos interesses do grupo dominante.
• Um espaço onde isso pode ser demonstrado é o da escola. A instituição possui o monopólio da violência simbólica legitima, ou seja, o poder de inculcar instrumentos de conhecimento arbitrários que servem aos interesses do grupo dominante e garantem a sua reprodução.
• Porém nesse quotidiano, há conflitos onde está em jogo esse monopólio da violência simbólica legítima que se vê constantemente ameaçado por lutas internas do grupo dominante.
• P.12. Em outro item do texto, Bourdieu atenta para a reprodução da estrutura do campo das classes sociais. Essa estrutura é reproduzida de uma forma irreconhecível no campo da produção ideológica e no campo das classes sociais. Neste ponto ele procura evitar o que ele chama de “redução brutal dos produtos ideológicos aos interesses de classe”. Isto é o que ocorre quando esses produtos ideológicos são apresentados como totalidades autossuficientes e autogeradas.
• Pelo contrário, as produções ideológicas são geradas nas lutas econômicas e políticas entre as classes com a função de impor a apreensão da ordem estabelecida como natural por meio da imposição mascarada de estruturas mentais objetivamente ajustadas às estruturas sociais.
• P.14 A guisa de conclusão, Bourdieu afirma que o poder simbólico é um poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização. Ele só se exerce se for reconhecido, se não for entendido como arbitrário.
• P.15. O poder simbólico é uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legitimada de outras formas de poder. Ele é capaz de produzir efeitos reais de reprodução sem dispêndio de energia
• Em nota 8 da P.15. Bourdieu fala da destituição do poder simbólico que somente será possível a partir da “tomada de consciência do arbitrário” que nele está contido. Isto, para ele, será a revelação da verdade objetiva e aniquilamento da crença e destruição das falsas evidências que desmobilizam os dominados.
• P.16 Há um quadro resumo sobre o poder simbólico. Nele são apresentadas as formas como são vistos os instrumentos simbólicos. O objetivo é sistematizar melhor as observações contidas no texto.

Capítulo II
Introdução a uma sociologia reflexiva


• Este texto foi uma introdução ao Seminário da École des Hautes Études em Sciences Sociales, em outubro de 1987.
• P.17. O texto inicia-se com uma citação de Leibniz na qual o filósofo do início do século XVIII apresenta de forma bastante simples a postura científica cartesiana na procura do bem e no evitar o mal: procurar as verdadeiras evidências, dividir o assunto em partes, seguir uma ordem e fazer enumerações. Refutando o pensamento cartesiano, Leibniz atenta para o principal: a ausência de critério para determinar o que é bem e o que mal.
• Leibniz, em seus escritos filosóficos do início do século XVIII, apresentou métodos e preocupações que anteciparam a lógica analítica e a linguagem dos séculos XX e XXI. Um dos princípios da filosofia de Leibniz é o da “reflexão”, no qual constata que qualquer animal pode agir de forma contingente e espontânea. O que diferencia o animal humano dos demais é a capacidade de “reflexão” que quando operada, caracteriza uma ação como livre. Os homens têm a capacidade de pensar a ação e saber por que agem.
• Iniciar com Leibniz um texto sobre sociologia reflexiva reforça a preocupação de Bourdieu com ofício de pesquisador e com o fazer uma sociologia reflexiva. Nele Bourdieu apresenta algumas preocupações metodológicas, preocupações quanto à determinação do objeto e outras preocupações relativas à prática científica. O que é comum em todas essas preocupações é o alerta que faz aos pesquisadores para que sempre rejeitem o pré-construído – o senso comum.
• Afirma que a atitude que deseja inculcar é a apreensão de que a pesquisa é uma atividade racional e não uma busca mística que nos dará conforto e confiança. Esta é uma postura realista diante da pesquisa na qual os investimentos terão rendimentos máximos com o melhor aproveitamento dos recursos a começar pelo tempo de que se dispõe. Essa postura, no exercício dói ofício, segundo Bourdieu, evitará decepções e dispêndio de energias desnecessárias.
• P.18. A exposição de uma pesquisa, para Bourdieu, é um discurso em que a gente se expõe, no qual se correm riscos. Porém quanto mais a gente se expõe, mais possibilidades existem de tirar proveito da discussão. As críticas e os conselhos dão chances de se liquidar erros e realizar correções.
• P.19. Aqui ele observa que o homo academicus gosta do acabado, mas, as pesquisas em estado nascente, em estado confuso dão oportunidade da verificação de como realmente se processa o trabalho de pesquisa.
• P.20. Nesta parte, Bourdieu trata da escolha dos objetos de pesquisa. Observa que há uma tendência entre os sociólogos a avaliar sua importância pela importância dos objetos que estudam. Este é o caso dos que se interessam pelo Estado ou pelo poder. Estes sociólogos, para Bourdieu, tendem a estar menos atentos aos procedimentos metodológicos o que acarreta uma menor reflexão sobre seus objetos. Já não é o que ocorre com os que buscam objetos aparentemente desvalorizados pela academia. Esses objetos podem acarretar reflexões que ajudam na compreensão da violência simbólica presente no mundo social.
• Dá como exemplo a pesquisa que vinha realizando na qual faz uma análise muito precisa de um “certificado” – o certificado de invalidez, de aptidão, de doença etc.. Nessa análise, ele procura compreender o certificado como um dos efeitos maiores do monopólio estatal da violência simbólica.
• P.21. Seguindo, Bourdieu chama atenção para a necessidade de observação da relação especial entre teoria e prática. Propõe um modo de produção científico adquirido operando-se praticamente.
• P.22. Constata que os historiadores e filósofos das ciências têm frequentemente observado que uma parte importante da profissão de cientista se obtém por modos de aquisição inteiramente práticos.
• P. 23. O habitus científico é um modus operandi que funciona em estado prático. É uma espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido a necessidade de tematizar o que se havia de fazer.
• P.23. Bourdieu trata do “pensar relacionalmente” no tocante à metodologia/teoria e no tocante à construção do objeto de pesquisa. Bourdieu procura mostrar que a separação da metodologia da teoria em instâncias separadas deve ser recusada completamente. A origem dessa divisão está na oposição epistemológica e constitutiva da divisão social do trabalho científico num dado momento – oposição entre professores e investigadores de gabinetes estudo. Teoria, método e objeto não estão isolados de um conjunto de relações e é dessas relações que se deve retirar o essencial das propriedades do objeto, isso porque o real é relacional.
• P.26. Bourdieu observa que a pesquisa é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez com a falta de inteligência, ficando-se privado deste ou daquele recurso entre os vários que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais da disciplina e das disciplinas vizinhas. No entanto, esclarece que essa liberdade tem como contrapartida a extrema vigilância das condições de utilização das técnicas de sua adequação ao problema.
• P. 34. No item “duvida radical”, Bourdieu afirma que construir um objeto científico é, antes de tudo, e, sobretudo, romper com o senso comum, isto é, com as representações partilhadas por todos, lugares comuns, representações oficiais que estão presentes nas instituições, nas organizações e nos cérebros das pessoas. O sociólogo está cercado do pré-construído que está por toda a parte. Por isso estar alerta é importante, porém, não é suficiente. Há de se atentar para a história social dos objetos.
• Os problemas dos objetos foram socialmente produzidos num trabalho coletivo de construção da realidade social.
• Os conceitos, as palavras e os métodos da profissão provocam duvidas no sociólogo porque ele é, com efeito, um enorme depositório de pré-construções que foram naturalizadas, ignoradas como tal e que funcionam como instrumentos inconscientes de construção.
• P.43. Alerta para o fato de que não se de limitar-se à descrição de experiências relativas ao objeto e sim se interrogar acerca das condições sociais que tornaram possíveis essas experiências.
• P. 44. Há a parte intitulada de “double bind” e conversão. Nela Bourdieu fala da dupla ligação a que está exposto o sociólogo: entre o perigo permanente do “discurso do senso comum” e o “discurso do senso comum douto” (Exemplo que dá dos escritos dos sociólogos americanos e o que sai no New York Times). Diante desses dois perigos, diante dessa dupla ligação Bourdieu orienta uma nova “conversão” do olhar. O sociólogo deve convergir seus olhos para novas formas do mundo social.
• Para colaborar na realização dessa “conversão” do olhar há uma “pedagogia da pesquisa” que transmite instrumentos de análise da realidade ao mesmo tempo em que vai formulando conceitos, técnica, métodos e uma atitude crítica diante da realidade Há de se rejeitar oposições fictícias entre autores, entre conceitos e entre métodos que no final são falsas sínteses de uma teoria sem prática.
• P.48. Em resumo, não basta romper com o senso comum vulgar, nem com o senso comum douto. É preciso realizar uma “conversão” do olhar numa ruptura, numa mudança de toda uma visão de mundo.
• P. 51. No item “objetivação participante” Bourdieu procura concluir o tema principal do texto que é a “sociologia reflexiva”. Ele esclarece que a “objetivação participante” é diferente da “observação participante”, pois esta última envolve a participação de um estranho no grupo. A “objetivação participante” é um exercício mais difícil porque se trata da relação do sociólogo com o seu objeto e com a sociologia, todos três elementos internos. A objetivação participante ocorre com uma “atitude reflexiva” sobre a sociologia. Só a sociologia da sociologia pode dar um certo domínio dos fins sociais que podem estar nas mira dos fins científicos diretamente perseguidos.

Capítulo III
A gênese dos conceitos de habitus e de campo

• O texto é a versão final do artigo de mesmo nome publicado em inglês no periódico Theories and Perspectives, nº 2 de dezembro de 1985, em Pittsburg, nos Estados Unidos. No mesmo mês foi publicado em Montpellier, na França.
• Bourdieu inicia fazendo um esclarecimento: ira apresentar os conhecimentos que obteve ao longo dos anos testando, na prática, a teoria de “campo”. Esclarece ainda que assim estará agindo cientificamente, pois, os conhecimentos teóricos adquiridos devem sempre ser investidos em novas pesquisas
• Ele observa que novamente trazendo a teoria do campo estará correndo o risco de ser considerado sectário e de dar a impressão de “monismo totalitário”, empregando sempre os mesmos conceitos em várias pesquisas. Mas o que lhe interessa é que na sua prática científica ele tem sempre procurado sintetizar e sistematizar os conhecimentos que pode obter aplicando-os a universos diferentes. È o que tem ocorrido com o modo de pensamento designado pela noção de “campo”. Na sua concepção a “teoria” deve ser tratada como “modus operandi” que orienta e organiza a prática científica.
• P.60. Sobre os “conceitos”, considera desnecessário fazer-se uma genealogia dos mesmos porque acredita que não se ganha muito re-situando-os em relação a usos anteriores. Portanto o que se propõe a realizar com relação ao conceito de habitus não se trata de uma genealogia do conceito.
• Bourdieu explica que introduziu o conceito de habitus em suas pesquisas quando realizava estudos sobre a arquitetura gótica e o pensamento escolástico. “habitus” havia sido tomado por Tomás de Aquino de uma velha noção aristotélica – a hexis – que designava noções de uma mesma espécie, permanente, costumeira, automática e desapercebida pelos seus autores.
• Portanto tratava-se de uma noção grega que fora apropriada pela escolástica do medieval, servindo nestes dois momentos para representar noções semelhantes.
• Bourdieu explica que ao retomar essa velha noção aristotélica desejava reagir contra o estruturalismo, pondo em evidência as capacidades criadoras, ativas, inventivas do “habitus” e do agente, coisa que a palavra “hábito” não traduz. O “habitus” é um conhecimento adquirido e também um “haver”, um capital. Ele indica a disposição incorporada, quase postural de um agente em ação.
• P. 62. Afirma que a decisão de retomar uma palavra da tradição para a reativar mostra que o trabalho de conceitualização pode ser cumulativo.Aproveitando conhecimentos, consolidando conhecimentos anteriores, sem se preocupar com a busca de originalidade a todo custo
• P. 63. A busca de originalidade a todo custo impede o que ele chama de “justa atitude para com a tradição teórica” que consiste em afirmar ao mesmo tempo a continuidade e a ruptura, a conservação e a superação e se apoiar em todo o pensamento disponível sem temer a acusação de “seguidismo”.
• Esta mesma atitude esteve na origem do conceito de “campo”. Primeiro a noção serviu par indicar a direção da pesquisa. Neste caso, uma investigação genealógica que fora dispensável no conceito de habitus, resultaria em erro. Para construir realmente a noção de campo foi preciso passar para além da primeira tentativa de análise do campo intelectual como universo autônomo de relações específicas. O conceito também já havia sido empregado por teóricos de várias correntes. Quando ocorre o emprego de um mesmo conceito por várias correntes, isso ocorre, segundo Bourdieu devido à existência de afinidades teóricas, de pontos de encontro.
• Esclarecida a origem dos conceitos de habitus e de campo, Bourdieu passa a explicar como pôs para funcionar estes conceitos que ele chama de “instrumentos de pensamento”, aplicados a domínios diferentes.
• A teoria geral dos campos foi se elaborando pouco a pouco a partir da transferência de formas contidas no modo de pensamento econômico. Exemplo disso é a utilização de termos como monopólio, concorrência, oferta, procura, capital. Essas formas não se colocavam como simples metáforas, mas como relações de permuta lingüísticas.
• P.69. A teoria geral da economia dos campos permite descrever e definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento, ganho)
• P.69. Compreender a gênese social de um campo é apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram.
• P. 71. Bourdieu afirma que a autonomização dos campos de produção cultural deriva de um lento e longo trabalho de alquimia histórica no qual ocorrem o que ele chama de “depurações”. De depuração em depuração as lutas que tem lugar no campo de produção demarcam os espaços mostrando o que é essencial e o que são situações específicas.
• Para Bourdieu sempre que se institui um desses universos relativamente autônomos – campo artístico, campo científico, campo político...o processo histórico aí instaurado atinge o mais alto grau de especificações. Donde a análise da história do campo ser, em, si mesma, a única forma legítima de análise de essência.

Capítulo V
A identidade e a representação – elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região

• Este texto foi publicado na revista Actes de la Recherche em Sciences Sociales de novembro de 1980 e é resultado de um trabalho empreendido com o apoio do DGPCT Diretorado Geral de Pesquisas Científicas e Técnicas, no quadro de um grupo composto por economistas, etnólogos, historiadores e sociólogos.


Capítulo VI
Espaço social e a gênese das classes

• Uma versão abreviada deste texto foi apresentada na Universidade de Frankfurt, em fevereiro de 1984 e a versão completa foi publicada na revista Acts de la Recherche em Sciences Sociales, em junho de 1984.
• Ao longo de todo esse texto Bourdieu estará preocupado em estabelecer diferenças e rupturas de sua teoria com o marxismo clássico. Inicia afirmando que a construção de uma teoria do espaço social implica em uma série de rupturas com a teoria marxista tais como:
o Deixar de privilegiar os grupos e passar a privilegiar as relações entre os grupos
o Perder a visão intelectualista que concebe a classe teórica como o grupo efetivamente mobilizado
o Romper com o economicismo que leva ao reducionismo do campo social
o Romper com o objetivismo que leva a ignorar as lutas simbólicas desenvolvidas nos diferentes campos nos quais está em jogo a representação social e a hierarquia no seio de cada campo e entre os diferentes campos
• Depois que estabelece esses pontos de rupturas, e que Bourdieu passa a analisar o espaço social.
• P. 133. Esclarece que se pode representar o mundo social em forma de espaço construído. Os agentes e grupos de agentes são definidos pelas suas posições relativas neste espaço. Cada um deles esta acantonado numa posição e numa classe precisa de posições vizinhas – quer dizer, numa região determinada do espaço e não pode ocupar realmente duas posições opostas do espaço. (dúvida ??? E quando ele afirma no capítulo VI que determinado agente pode ocupar ora uma posição de dominado, ora a posição de dominante ?)
• Este campo possui propriedades atuantes e por isso pode ser descrito como um campo de forças, como um conjunto de relações de força objetivas impostas a todos os que entrem neste campo.
• Nele há interações e permutas reais, solidariedades, rivalidades, vizinhança. Essas propriedades atuantes têm lugar a partir das diferentes espécies de poder e de capital que ocorrem nos diferentes campos.
• O capital que pode existir no estado objetivado – na forma de propriedades materiais ou em estado incorporado – juridicamente garantido. As espécies de capital portados pelos agentes definem a probabilidade de ganhos no campo.
• A posição de um agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, quer dizer na distribuição de poderes que atuam em cada um deles. Seja, sobretudo, o capital econômico e suas diferentes espécies – capital cultural e capital social, capital simbólico (geralmente chamado de prestígio, reputação, fama).
• Nesse modelo simplificado de campo social, a posição de cada agente em todos os espaços de jogo possíveis, entendendo-se que cada campo tem sua lógica própria, sua hierarquia que se estabelece entre as espécies de capital e as possibilidades de haveres dos seis agentes – pode-se então concluir que o campo econômico tende a impor sua estrutura aos demais campos.
• Os agentes se distribuem no campo, num primeiro momento, segundo o volume global do capital que possuem e numa segunda dimensão, de acordo com a qualidade de seu capital. As relações de força são definidas a partir da quantidade e da qualidade do capital acumulado pelos agentes.
• P.137. “Classes no papel”: Bourdieu inicia afirmando que o que existe é um espaço de relações o qual é tão real como um espaço geográfico. Nele as mudanças de lugar se pagam em trabalho, em espaços e, sobretudo, em tempo (ir par baixo, para cima é guindar-se, trepar e trazer marcas ou estigmas desse esforço).
• Há também a probabilidade de mobilização em movimentos organizados, dotados de um aparelho e de porta-voz. Há o poder delegado. Neste espaço há a aproximação dos mais chegados, dos mais homogêneos que formam classes, por exemplo: a classe operária.
• Mas há também a aproximação dos mais afastados – aproximações de classes com interesses em comum. Bourdieu dá como exemplo a unidade entre operários e patrões diante de uma crise internacional.
• Lembrança de uma situação de minha pesquisa – a proposta da organização política MR8, no final dos anos 70, mais precisamente a partir do congresso de 1979, era a união das classes populares com a burguesia nacional. O objetivo comum aos dois grupos era por fim à ditadura militar e unir forças contra o imperialismo monopolista.
• Todas essas questões Bourdieu observa e reafirma tomando o dito de Aristóteles: “o mundo social pode ser dito e construído de diferentes modos, segundo diferentes princípios de visão e de divisão construídos.
• Os agrupamentos e reagrupamentos que se dão na base da distribuição do capital apresentam maiores probabilidades de serem estáveis re duradouras. As outras formas estão sujeitas a cisões e oposições.
• Como exemplo daríamos os partidos políticos que se formam com a característica de frentes, Neles há agentes sociais que portam diferentes tipos de capitais – classe operária, pequena burguesia, alta burguesia. Há um interesse comum que os une momentaneamente, porém ele está sujeito às cisões, ao passo que uma organização que reúna os portadores de idêntico capital, por exemplo, o sindicato patronal dos produtores de veículos automotores no Brasil. Neste caso, as relações tendem a serem menos conflituosas e mais duradouras.
• P.138. Bourdieu apresenta o que considera uma primeira ruptura com a tradição marxista. Trata-se da construção da classe. Considera que o marxismo apresenta, por vezes, uma lógica totalmente “determinista” e, em outras, “voluntarista”. Determinista quando mostra a transformação do proletariado em classe-em-si em classe-para-si, (o proletariado deixando o papel de somente existir como produtor explorado pela classe dominante, passando a também usufruir das riquezas produzidas) de forma lógica, mecânica e orgânica, como efeito inevitável do tempo de maturação das condições objetivas.
• E no segundo caso “voluntarista”, quando apresenta a “tomada de consciência de classe” como algo concebido a partir de uma “tomada de conhecimento” da teoria operada sob a direção esclarecida do partido. Bourdieu questiona como surgiram afinal as condições econômicas objetivas que possibilitaram, o surgimento desse grupo em luta.
• P.139. No item “A percepção do mundo social e a luta política”, Bourdieu afirma que a teoria mais objetivista tem que integrar não só a representação que os agentes têm do mundo social, como também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo.
• P. 141. Bourdieu fala do “princípio de realidade”. Explica que as categorias de participação no mundo social são produto da incorporação de estruturas objetivas do espaço social. Isso leva os agentes a tomarem o mundo social tal como ele se lhes apresenta. Aceitam-no como natural. O “sentido de realidade” acarreta a determinação “do que se pode ou não se pode permitir-se a si mesmo”. Isso implica uma aceitação tácita da sua posição no mundo social. Daí a visão de mundo dos dominados funcionar como uma espécie de conservação socialmente construída.
• Nota 6. p. 141. Esclarece que esse “sentido de realidade” não implica, de forma alguma, a “consciência de classe”, pois, esse só se apresenta após um cálculo econômico e uma forma mais ou menos elaborada de um futuro coletivo.
• P. 142. Trata da formação de grupos sociais. Observa que as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas visões de mundo social. Considera que nessas relações ocorrem lutas, conflitos que opõem os agentes acerca do sentido do mundo social, de sua posição no mundo, da sua identidade social. Os mal-estares, as ansiedades, inquietações que possuem representam um considerável poder social de construir grupos reunidos em torno de um senso comum, de um consenso explícito. No interior desses grupos ocorrerá uma luta simbólica pela produção desse senso comum, ou seja, pelo “monopólio da nomeação legítima” como imposição oficial da visão de mundo dos agentes que detêm aquele tipo de capital.
• P.146. Sobre a ordem simbólica e o poder de nomeação. . Esclarece que o poder de nomeação é o que detêm os agentes que realizam o ato de imposição simbólica, tendo a seu favor toda a força do coletivo operada por um mandatário do Estado que para Bourdieu é o detentor do monopólio da violência simbólica legítima.
• Como exemplo do poder de nomeação e de sua lógica, Bourdieu apresenta o caso do “título” – nobiliário, escolar ou profissional – trata-se de um capital simbólico garantido juridicamente. O título profissional ou escolar, por exemplo, é uma espécie de regra jurídica de percepção social – garantido pelo direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal e não apenas legítimo.
• P. 151. O campo político e o efeito das homologias. Neste ponto Bourdieu observa (p.152) o fenômeno que a tradição marxista designa de “consciência exterior” para explicar a contribuição dada por certos intelectuais para a produção e difusão - em direção aos dominados – de uma divisão do mundo social em ruptura com a visão dominante. Para ele esse fenômeno só pode ser compreendido socialmente se levarmos em conta a “homologia de posições”: um dominante pode ser dominado em seu grupo de origem. Esse fato pode gerar cumplicidade nas estruturas sociais e nas estruturas mentais. (Exemplo? Fidel Castro oriundo da classe dominante em Cuba de 1959 pode ser considerado um desses intelectuais da “consciência exterior” era dominado dentro do grupo de poder já que era liberal e anti-imperialista. ? Outro caso os intelectuais que participavam das organizações da esquerda revolucionária do Brasil dos anos 60 e 70)
• P. 156. Procurando sintetizar melhor a questão central do texto, Bourdieu afirma no que diz respeito ao espaço social que toda a história do campo social está presente, em todo momento, de forma materializada em instituições, tais como partidos, sindicatos e em forma incorporada nas atitudes dos agentes que fazem funcionar as instituições ou que as combatem.
• P. 157. A classe como representação. Neste ponto Bourdieu se dispõe a criticar a “vontade de representação” dos porta-vozes de uma classe. Para isso transpõe análises de historiadores do campo do direito relacionadas à representação. Trata-se do que no direito canônico chamam de “mistério do ministério” o porta-voz dotado do poder de falar pelo grupo, torna-se “misteriosamente” o próprio grupo. Recebe o direito de se assumir pelo grupo. Exemplo: a Igreja é o Papa. O papa é a Igreja. L´Etat cést moi de Luís XIV. Essa mesma noção leva o secretário geral a identificar-se e a ser identificado com o partido, o rei com o estado.
• Essa relação Bourdieu chama de “relação de metonímia com o grupo” e é a partir dela que tem existência uma classe pela vontade de representação de seus porta-vozes. Essa classe existe na medida em que – e só na medida em que os mandatários dotados do pleno poder de agir podem se sentir autorizados a falar em nome dela.
• P. 160. Radicaliza afirmando que o modo de existência daquilo a que hoje se chama, em muitas sociedades de “classe operária” é perfeitamente paradoxal porque trata-se de uma existência em pensamento. De uma existência no pensamento de uma boa parte daqueles que a classificação das palavras designam como operários, mas também no pensamento dos ocupantes das posições mais afastadas destes últimos no espaço social.
• Essa classe operária com vontade de representação, Bourdieu esclarece, nada tem da “classe em ato” – grupo real, realmente mobilizado que a tradição marxista evocava (observar o emprego do imperfeito)
• Conclui com uma crítica aos mandatários que conseguem impor pela sua existência e pelas suas representações essa classe operária com vontade de representação. Considera que isso tem dado possibilidades de surgimento de obstáculos ao progresso de uma teoria mais adequada ao mundo social, como fora (observar desta vez a utilização do mais-que-perfeito) o marxismo.

Memória e Espaço. Modernidade Líquida, Zigmunt Bauman

Modernidade Líquida
Zigmunt Bauman
por Eladir Santos

O livro utilizado: tradução da edição inglesa do ano 2000

Autor:
Bauman é sociólogo, polonês, professor emérito da Universidade de Varsóvia e de Leeds, na Inglaterra. Atualmente tem se dedicado ao estudo da modernidade e das condições da vida social e política que essa modernidade criou.

Neste ensaio, Modernidade Líquida, Bauman procura concluir uma análise iniciada em dois trabalhos anteriores:
• Globalização, as conseqüências humanas
• Em Busca da Política

Neste livro Bauman, além de apresentar, em termos gerais como se tem colocado a crítica social diante da atual fase da modernidade que ele chama de fase líquida, ele procura analisar e chamar atenção para a fluidez presente, de cinco conceitos relativos à vida humana. São os conceitos de
• Emancipação
• Individualidade
• Tempo/espaço
• Trabalho
• Comunidade

Bauman inicia o primeiro capítulo que trata da Emancipação trazendo as observações de filósofo e sociólogo alemão Marcuse depois de passadas três décadas de crescimento sem precedentes e segurança econômica que se seguiram a o final da Segunda Guerra. Marcuse constatava que se vivia uma situação nova na história na qual estava presente a necessidade de libertar-se de uma sociedade próspera e que funciona relativamente bem. Por isso a questão da emancipação não atraía a massa da sociedade.

Poucas pessoas desejavam se libertar, menos pessoas ainda estavam dispostas a agir para isso. E também ninguém tinha a certeza de que libertar-se era uma boa coisa.

Bauman questiona a questão da liberdade como um real objetivo dos indivíduos. Verifica que a liberdade pode se apresentar como uma maldição. Uma maldição disfarçada de benção.
Neste ponto ele procura fazer uma distinção entre
• Liberdade objetiva e
• Liberdade subjetiva

E procura observar a necessidade de libertação subjetiva e necessidade de libertação objetiva

Para melhor expor esta distinção, Bauman utiliza-se do conceito de “princípio de realidade” elaborado por Freud. É um conceito relacionado à busca humana do prazer e da felicidade.

Segundo esse conceito, as intenções fossem elas realmente experimentadas ou apenas imaginadas são sempre adaptadas ao tamanho da capacidade de agir com chance de sucesso.

Essa adaptação pode também levar o indivíduo a nunca chegar a verificar os limites de sua capacidade de agir.

Isso pode caracterizar, segundo Bauman, uma espécie de “lavagem cerebral” que afasta a percepção das reais condições objetivas para se agir e para se desejar a liberdade.

Bauman chama também atenção para o fato de que os teóricos da fase sólida da modernidade, como Hobbes, consideravam a liberdade imprópria para o homem comum, pois, esta o deixaria à solta, sem limitações coercitivas que eram consideradas necessárias para a vida em sociedade.

Esse homem, pela análise hobbersiana seria uma “besta” e não um indivíduo livre. A falta de limites necessários e eficazes faria a vida detestável, brutal e curta.

Bauman observa que essa visão hobbesiana está presente também em Durkhein, quando este afirma que as sansões punitivas libertam o homem de uma pseudo-humanidade, para ele a mais terrível das escravidões.

Por essa visão a coerção social torna-se uma força emancipadora e, contraditoriamente, a única esperança de liberdade a qual o ser humano pode aspirar.

Ainda neste capítulo, Bauman observa que o maior herdeiro de Diderot, um teórico do Iluminismo, é o sociólogo Anthony Guiddens, que nós estudamos na aula anterior. Isso porque ele, assim como Diderot que polemizava com Adam Smith, o ideólogo do Liberalismo Econômico, Guiddens aponta o valor do hábito para as práticas sociais quanto para a autocompreensão. Imaginar uma vida de impulsos momentâneos e ações de curto prazo, destituída de rotinas é de fato imaginar uma vida sem sentido.

Bauman verifica que, nesta fase da modernidade ainda não se atingiu o extremo que faria a vida sem sentido, porém, muito dano foi causado com a incerteza; a fluidez dos atos que não chegam a se tornar rotinas; o desmantelamento do mundo cotidiano e o vazio que torna os seres humanos cada vez mais vulneráveis.

Observa também a definição de Toraine, sociólogo francês que tem teorizado sobre a necessidade de ação política nesta fase da sociedade que ele chama de pós-industrial. Touraine afirma que o ser humano é eminentemente um ser social, definido por seu lugar na sociedade. É a sociedade que determina seu comportamento e suas ações.

Por essa definição todas as ações sociais, todas as especificidades culturais e psicológicas podem ser encontradas dentro dos indivíduos e não mais em instituições ou em princípios universais.

Bauman constata que nesta fase da modernidade os valores comunitários estão fora de época e os sonhos comunitários foram desacomodados. A sociedade deixou de se questionar.
Observa que isso não significa que a sociedade tenha suprimido a validade do pensamento crítico, mas significa que há uma sociedade de indivíduos emancipados, livres que, no entanto, não estão engajados em uma “política-vida”.

Somos reflexivos individualmente, neste ponto Baumam junta-se a Guiddens. Somos reflexivos individualmente e estamos sempre prontos a corrigir nossos rumos, mas, abandonamos o espaço da ágora – o espaço da política.

Observa também as inferências de Ulrick Beck que considera o período atual como uma segunda modernidade. Para Bauman, o sociólogo alemão, autor da teoria da sociedade de risco, perde de vista a natureza da mudança presente quando considera esta fase da modernidade como aquela em que a acomodação do pensamento às ideias de modernidade não possibilitam as ações críticas e coletivas

Finalizando suas observações sobre o conceito de emancipação, Bauman recorre à duas metáforas para tentar explicar o ocorrido nesta fase da modernidade.
• A metáfora do acampamento e
• A metáfora da casa compartilhada

No primeiro há a negociação que existe em termos de administração do lugar a ser ocupado. Essa administração nunca é questionada e no acampamento nunca se pretende assumir responsabilidades relativas ao gerenciamento do lugar.

Na casa compartilhada ocorrem relações entre o espaço e o público. Existe a co-responsabilidade pelo gerenciamento

Bauman conclui que na modernidade líquida o padrão seguido é o do acampamento.

domingo, 23 de mayo de 2010

Memória Social 1, Walter Benjamin, Sistematização da Vida e obra do autor

Walter Benjamin – Sistematização da vida e obra do autor
Myrna Amaral Catinin
Gyl Giffony Araújo Moura
Luis César

1) CONTEXTUALIZAÇÃO E INFLUÊNCIAS TEÓRICAS

Walter Benjamin foi um ensaísta, filósofo, tradutor, crítico literário e cidadão de intensas atividades políticas e culturais. Judeu nascido em 1892, Benjamin vivenciou duas guerras mundiais, recessão econômica e ascensão dos regimes totalitários; afetado profundamente por estes últimos, suicidou em 1940.
Um dos nomes mais conhecidos da Escola de Frankfurt, apesar de controvérsias quanto a sua participação não oficial na referida instituição, que buscava uma reinterpretação do marxismo, não mais partindo da estrutura (economia), mas privilegiando em suas análises a relação da infra-estrutura (relações de produção) com a super-estrutura (as artes e a ideologia). Compreende-se daí o tão grande interesse da Escola pela postulação da estética como o lugar principal de exercício de sua Teoria Crítica Social. Visto isso, já podemos considerar Benjamin mais do que um crítico de arte, entendendo que seus escritos estavam articulados com um posicionamento acadêmico- político de compreensão de mundo. Identificamos três perspectivas que exerceram grande influência no pensamento benjaminiano: o romantismo alemão1, o messianismo judeu e o marxismo. Não há uma combinatória ou síntese entre essas perspectivas, mas invenção, a partir delas, de uma nova concepção profundamente singular. Os escritos de Benjamin são perpassados por uma perspectiva negativista, pois descreve-se – de maneira literária e quase épica – a morte das coisas no mundo da ciência e da técnica. O narrador, a experiência, a aura e até mesmo a revolução são descritas sob o ponto de vista dos vencidos, que é um posicionamento político característico do autor ante a história tradicional, escrevendo epopéia dos conquistadores.
Um conceito que vale destacar é o de materialismo histórico, que foi até ponto de dissidência entre Benjamin e a Escola de Frankfurt, pois o autor combate a idéia de progresso que é inerente ao conceito. Para Benjamin a revolução não será um resultado natural ou inevitável do progresso econômico, mas, sim, uma interrupção de uma evolução histórica que conduz à catástrofe.

2) SOBRE O NARRADOR E A EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA EM WALTER BENJAMIN
Benjamin apresenta em "O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov" tanto a origem da narrativa quanto sua decadência a partir da intensificação do romance através da imprensa, bem como das relações fundamentais entre a experiência e a memória. O autor em questão parte da observação de que as ações da experiência estão em baixa, o que naturalmente ocasiona a derrocada da narrativa. A experiência que perpassa as pessoas é o objeto recorrente do narrador.
A narrativa tem dois grupos interpenetrantes em sua origem. De um lado, aquele que vem de longe, na figura do marinheiro viajante; de outro, aquele que permaneceu em sua terra, com suas ações da experiência honesta na expressão do camponês sedentário. Entretanto, foram os artífices que aperfeiçoaram a arte da narrativa.
O senso prático pela utilidade moral da narrativa definhou na medida em que a dimensão do conselho dado perdeu o seu sentido. As experiências tornaram-se incomunicáveis. E o motivo de tal incomunicabilidade encontra-se na “evolução secular das forças produtivas”. A narrativa cedeu forçosamente o lugar privilegiado ao romance. Este, por sua vez, teve seus primórdios antes mesmo da ascensão da burguesia e da invenção da imprensa. Entretanto, somente tomou uma dimensão superlativa, ao mesmo tempo, deprimente da condição humana e da narrativa, quando seu encaixe com a individualidade secular e a burguesia se efetivou na modernidade.
Ao passo que a narrativa tem um vínculo arcaico (original) com a poesia épica pelos laços arremessados de pessoa a pessoa, por sua peculiar extensão através das experiências transmitidas, o romance encontrou seu lugar de acomodação no escritor e no leitor, individualizados e separados. A experiência perdeu seu sentido arcaico quando o romance desvinculou a existência da sabedoria transmitida. O escritor do romance não cunhou com a sabedoria da experiência vivida a sua obra, mas satisfez seu isolamento e cedeu um motivo para o isolamento do leitor.
A desvinculação provocada pelo romance neste período moderno foi insuficiente para a própria estirpe individualista da burguesia. A informação tomou o status da objetividade e da extrema ausência de vínculos entre as experiências e as pessoas. Não só os conselhos se perderam, mas o que havia de mais comum entre a experiência e a vida. O desafeto da informação não só declinou a experiência a um lugar ínfimo, mas a despojou daquilo que a tornava excepcionalmente importante: sua validade entre prazer de narrar e a satisfação livre de ouvir e interpretar, ou seja, de fazer experiência novamente.
Remontando à poesia épica, pode-se observar que quando Homero e Hesíodo marcaram a humanidade, não foi por suas verdades, mas pelos valores e sentidos que deram à existência humana através da glória dos heróis e dos afetos dos deuses; não só aproximaram os homens de suas experiências, mas demonstraram os afetos dos deuses. A diferença fundamental da informação para a poesia épica está justamente no afeto que caracteriza a alteração notória entre ativo e passivo. A informação cunha personalidade, desejo, caráter, mas do modo favorável da produtividade e do consumo capitalistas, dissociando a sabedoria da experiência. A informação não exige uma memória da vivência, transformando a existência humana com o afeto, mas causando o desafeto. Tanto mais informações, quanto menos vínculos existem entre a vida e a experiência. O exagero da produção é uma exigência da demasia de informações. Quanto mais informações estagnadas, menos o homem é capaz de uma memória que seja ativa e livre para vincular seu desejo com sua experiência. Ao contrário, a arcaica maneira narrativa de se referir à vivência humana é bem distante por não se poder hoje entender com facilidade que interpretar é importante quando não se tem as explicações prontas sobre os fatos. A gravidade das explicações as sobrepõe aos acontecimentos e às coisas de maneira a extinguir a liberdade do desejo da projeção que ouve ou lê.
Entender que Benjamin se refere à experiência com uma notória estima é “ouvir” algo próximo do que pode ser memorável ativamente, pois a transmissão veloz e desarticulada da informação com a interpretação livre não satisfaz outra realidade senão a da burguesia capitalista, em sua reação individualista e passiva. Benjamin não “narra” nesse texto sobre o narrador, mas faz a crítica da fugacidade da informação dissidente do romance.
O romance é a pretensão de fazer o vínculo com a possibilidade de um leitor satisfeito. Entretanto, esta satisfação está muito mais como acusativa de sua precariedade de experiência do que de seu salutar e almejado final feliz. Ao contrário daquele que ouve a narrativa, o passivo leitor do romance apenas imagina que sua estagnação pode ser despojada. Prova disso é que um livro se sobrepõe ao outro sem uma postura remissiva do leitor com sua própria condição de existência. Sempre precisará de outro livro para a mesma condição, estagnada e passiva submissão de uma individualidade viciada.
A narrativa extrapola o limite do cotidiano quando arremessa o ouvinte a outro lugar, mas o faz somente como exaltação memorável dos feitos, das experiências. E mais, faz circular um desejo de relação, distante do ostracismo de um leitor que apenas imagina fracamente a experiência e não a efetiva, não cria como a imagem trazida de longe.
A imagem alheia, trazida pelo narrador, não afasta o ouvinte, mas o instiga à criação quando é afetado por sua experiência de ouvinte que interpreta, que mistura sua experiência à narrativa. Neste sentido, a narrativa tem um ponto forte quando mantém o vínculo do que é memorizado com a experiência de quem narra e de quem ouve. Diferente do que é lido no romance, a imagem ouvida é fruto de uma memória que a recria a cada vez que restabeleceu os laços das experiências dos envolvidos.
Saber narrar, neste sentido, é refazer a imagem na medida em que se aceita o ouvinte como parte da própria narrativa. Algo que pode reafirmar tal conceito é a extensão da própria narrativa, que torna irrelevante até mesmo um dado individual como a morte, lançando ao prelo a experiência coletiva.
O próprio dom de narrar é a reverência que o narrador tem por sua vida inteira. Quando narra, não sobrepõe explicações de fatos, mas conta a sua vida inteira. E esta integralidade também é coletiva porque é assumida como criação da memória que interpreta com diferenças em cada nova experiência entre narrador e ouvinte.
Uma característica importante do narrador é a mobilidade entre o individual e o coletivo, quando exercita a memória da experiência e a recria com a novidade do que narra e deixa ouvir. O exemplo explícito disso é o aspecto vigoroso do conto de fadas. Ensinou a humanidade a dialética da coragem entre a astúcia e a arrogância para encarar o medo diante do mundo mítico. Por mais que o mito tenha sua validade cultural para uma época antiga, não se pode negar que foi assustador também. O conto de fadas foi uma maneira de confronto e uma tentativa de lidar com o extremamente outro, o demasiado assombroso do mito. No entanto, o que se faz evidente não é o modo de lidar com o outro, com a extremidade, mas a mobilidade com que se produz discurso sobre a experiência no seio da diferença.
Uma falsidade, no modelo da máscara e da fantasia, não deixa de ser válida quando é emersa como remédio para o combate e a remissão de uma dor. A questão aqui não está entre o que é verdadeiro ou falso na experiência, mas o que produz, reproduz e cria experiência. Seja ela um produto de um mascaramento para destituir uma situação insatisfatória, ou a reafirmação da experiência vivida, um jogo de medidas para libertar a totalidade, a vida inteira. Bem daquela maneira do justo que Benjamin salienta: que se encontra consigo mesmo quando descobre a totalidade de sua vida. E esta totalidade engloba o individual e o coletivo, em propensão à harmonia de contrários, diferente do escritor e do leitor do romance, que negam uma parte presente e sonham sem fertilidade com um final feliz.
A memória do narrador foi criadora através da experiência do já vivido com o que se vivia durante a narrativa. Entretanto, esta mesma experiência não é outra senão a que foi atrofiada com a modernidade e o seu excesso de produção sem profundidade, sem raízes naquilo que se vive. Do mesmo modo que Benjamin estimou Proust por fazer uma narrativa quando a experiência estava falida, com os instrumentos gráficos do romance, pode-se entender que o texto sobre o narrador tem validade como crítica da modernidade, ou da infertilidade do tempo moderno. Uma valorização da memória do tempo por Proust não seria outra coisa senão a recriação da experiência vivida. Deste modo, a busca do tempo perdido é a memória do que vem de longe, mas também é a experiência do “camponês sedentário”, que dispõe de tempo para viver a experiência. E viver significa aqui envolvimento, relação entre o individual e o coletivo, degustando a sabedoria do distante e do próximo.

3) O OLHAR BENJAMINIANO PARA HISTÓRIA
Perfazendo o movimento da obra de Walter Benjamin chegamos em 1940 a seu último trabalho: “Sobre o conceito de história”. Escrito póstumo, referente a uma fase mais crítica, o ensaio foca-se em questões acerca das abordagens históricas e suas relações com o materialismo histórico, o protagonismo da memória dos vencidos e a noção de progresso.
Iniciando seu texto com uma descrição alegórica de um jogo de xadrez, Benjamin aponta o historicismo de seu tempo como uma marionete manipulada pelo materialismo histórico; diretamente, o que almeja é mostrar o predomínio de reconstruções do passado ditadas por aqueles que vêem os acontecimentos como fruto das condições econômicas da sociedade. Indaga-nos a pensar sobre as reais intenções dessa História, a quem ela serve, a que se destina, o que pretende... Benjamin aplica ao materialismo histórico o papel de vilão, como aquele que, durante o enredo, tem como objetivo impedir o “encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa2”.
Logo após, fugindo de um fatalismo cruel e escuro, nos mostra que, dentre essa possessão das imagens do passado pelos vencidos e dominantes, há um pouco de luz. Seja no entre ou abaixo do discurso histórico empreendido pelo materialismo, os vencidos processam sua memória. Referindo-se ao pensamento benjaminiano, Myrian Sepúlveda dos Santos afirma que
Em suma, a história colocou a memória, lembrança do passado, a serviço dos colonizadores, mas a memória foi capaz também de preservar com ela as barbáries dos colonizadores no discurso que os legitima. Embora a memória não seja capaz de nomear as injustiças anteriormente cometidas, ela as traz em suas narrativas3.
Em suas “teses” sobre a história, o autor critica fortemente a concepção de progresso difundida pela social-democracia. Para Benjamin, em nome dessa tendência progressista concentrada principalmente na ciência e na tecnologia deteriorou-se a experiência e a rememoração, criando-se um “tempo vazio e homogêneo”.
Ele nos traz ainda a metáfora do quadro de Klee, Angelus Novus, assinalando que mesmo tendo conhecimento da totalidade, do conjunto das ocorrências do passado, a história de forma parcial e estratégica seleciona os acontecimentos que legitimam os vitoriosos e propaga-os, fortalecendo os dominantes e conformando os dominados. Mesmo ciente das memórias de todos, a história apega-se a poucas e poucos ao seguir sua marcha para o futuro, fixamente guiada pelo ideal de progresso.


4) GLOSSÁRIO:
Narrador – um artesão da comunicação; não está preocupado em transmitir o “puro em si”, mas mergulha a coisa na vida do narrador.
Experiência – diferente do termo vivência; tem relação com a transmissão e o compartilhamento com uma coletividade. Para Benjamin, a experiência não se constitui no momento que se vive, mas no momento em que se transmite.
Aura – autoridade da obra de arte tida como um objeto singular, e não somente uma representação; o que é autêntico; tem uma história única, logo há efeitos reais do tempo sobre a obra; tem uma função ritual, mesmo que secularizado.
Progresso – idéia contida na perspectiva histórico-marxista e que é criticada por Benjamin; traz a história e a revolução como algo disrruptivo e não progressivo.

Memória Social 1 Elizabeth Jelin, Los trabajos de la Memória

Los trabajos de la memoria - Elizabeth Jelin
Madrid: Siglo XXI, Social Science Research Council, 2002.
Grupo: Sandra Arenas, Carlos Beltrão, Lorena Best

Nota prévia:
O trabalho está organizado em três partes. Na primeira, realizamos uma breve introdução da biografia da autora e o contexto da obra resenhada. Na segunda parte, apresentamos um resumo da introdução e dos dois primeiros capítulos do livro, pois neles se encontram o enfoque e a abordagem que a autora propõe. Na terceira parte, elaboramos um diálogo entre o desenvolvimento da metodologia de Jelin, que se encontra nos capítulos 3, 4, 5, 6 e 7, e casos similares de violência política e repressão ocorridos no Brasil, na Colômbia e no Peru.
I
Sobre a autora e a obra
Licenciada em Sociologia na Universidade de Buenos Aires e Doutora em Sociologia (Universidade de Texas). É pesquisadora superior do CONICET, diretora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais da UNGS (Universidade Nacional de General Sarmiento) e do IDES (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social). É membro do diretório do UNRISD (Genebra) e diretora/editora da série de livros “Memorias de la Represión”. Seus temas de pesquisa são os direitos humanos, as memórias da repressão, a cidadania, os movimentos sociais e a família. Dentre seus livros recentes: “Los trabajos de la memoria” y “Pan y afectos: la transformación de las familias”.
Los trabajos de la Memoria faz parte da série Memórias da Repressão, resultado do Painel Regional de América Latina (RAP), da Social Science Research Council, que teve a missão de promover a pesquisa e a formação de pesquisadores sobre as memórias da repressão política do Cone Sul. Esta coleção foi a dirigida por Carlos Iván Degregori (sociólogo peruano) e Elizabeth Jelin. O programa apoiou com bolsas de pesquisa mais de 60 pesquisadores da Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai, Uruguai e Estados Unidos. O programa apresenta 3 questões principais:
• A necessidade de gerar avanços teóricos na pesquisa do tema, seu rol na constituição das identidades na região e suas consequências nas lutas pela memória sobre as práticas sociais e as políticas nas sociedades em transição.
• Promover o desenvolvimento de uma sólida geração de pesquisadores nestes temas.
• Criação de uma rede de intelectuais públicos da região preocupados pelos temas da memória.

“Hay contradicciones, tensiones, silencios, conflictos, huecos,
disyunciones, así como lugares de encuentro y aun
‘integración’. La realidad social es compleja, contradictoria,
llena de tensiones y conflictos. La memoria no es una excepción.” (p. 37)
II
Introdução e enfoque: capítulos 1 e 2
Já o título do livro deixa entrever a posição da autora: a memória trabalha. Isso significa também que a memória é ativa, cria, tem responsabilidades e constrói, em suma, a memória é um processo que visa à transformação. A obra tem um caráter dialógico, apresenta questões, lança algumas luzes sobre elas e ao mesmo tempo é consciente dos vazios em determinadas abordagens. O objetivo do livro é encontrar sentido aos acontecimentos e sofrimentos que impulsionam aos movimentos do “nunca mais” em defesa da dignidade humana e dos direitos humanos. Em resumo, é a perspectiva de uma intelectual comprometida, engajada com a procura da dignidade e da justiça social.
O foco da obra são as memórias da repressão; nesse sentido trata-se de memórias da crise, da ruptura do inominável, do sofrimento e da supressão da dignidade humana. Uma memória ativa que se identifica com a justiça (Yerushalmi). Assim, a análise metodológica propõe ferramentas para uma interpretação e contextualização dos esquecimentos, silêncios e “buracos” da memória da repressão; no meio dos movimentos de Direitos Humanos, das organizações da sociedade civil pelo “nunca mais”, dos processos judiciários contra os repressores das ditaduras e das transformações legais, judiciárias e executivas dos Estados em transições para a democracia. Enfim, no contexto social de um passado que não quer passar, pois a memória insiste na sua presença.
Assim, as ferramentas que o livro propõe para analisar os sentidos e presenças do passado atravessam os âmbitos político e cultural, simbólico, pessoal, histórico e social, a partir de (p. 2):
• Pensar as memórias como processos subjetivos ancorados em experiências e marcas simbólicas e materiais.
• Pensar as memórias como objetos de disputas, conflitos e lutas (atenção ao rol ativo do produtor dos sentidos dessas lutas nas relações de poder).
• Historizar as memórias: reconhecer que existem mudanças históricas nos sentidos do passado.
O texto se ancora nos vestígios das ditaduras das décadas de 60 a 80 e nos processos pela restituição dos direitos na década de 90, no contexto dos processos de democratização atual nos países do Cone Sul. A pesquisa se centra no caso da ditadura Argentina, fazendo paralelos com os casos do Uruguai, do Chile e, em menos medida, com do Brasil. Trata o caso do Holocausto como momento paradigmático para o estudo das memórias da violência e da repressão política, fazendo um percurso pela Guerra Civil Espanhola.
Assim, pensar no contexto atual significa pensar nos regimes democráticos atuais, que propõem políticas neoliberais com um forte apego ao mercado, uma forte violência policial (com traços de penalização da pobreza e da etnicidade), direitos civis ameaçados e discriminação das minorias. Neste contexto, cabe pensar nas continuidades e rupturas entre as ditaduras e os frágeis regimes constitucionais da atualidade? (p. 4) Assim, o passado ditatorial recente faz parte central da experiência do presente. Aqui se ancoram os conflitos para processar o passado: desde as instituições até a sociedade civil. O fato básico é que é impossível encontrar uma memória, uma visão e uma interpretação única do passado. A luta política se dá sobre o sentido do passado e muitas vezes essa luta se coloca contra o esquecimento: “lembrar para não repetir”. No livro, Jelin apresentará o esquecimento, o silêncio, os buracos da memória como parte de este tenso processo de lutas políticas e sociais. (p. 6)

Capítulo 1 - A memória no mundo contemporâneo
Para falar da memória no mundo contemporâneo, a autora, retomando as questões propostas por Huyssen, chama a atenção para a explosão da memória no mundo ocidental, afirma que a cultura da memória se apresenta como resposta à mudança rápida e uma vida sem ataduras ou raízes. A memória enquanto mecanismo cultural que permite fortalecer os sentidos de pertencimento, em especial entre grupos oprimidos, silenciados ou discriminados.
Jelin chama a atenção sobre aqueles olhares conservadores e nostálgicos da memória, como o de Nora; tanto como aqueles que se lamentam pelos passados que não passam, pelas fiações e as persistências de passados dolorosos que não permitem o esquecimento, representados em autores como Todorov.
Mas que uma moda, para a autora, a memória e o esquecimento, a comemoração e a lembrança se tornam importantes quando estão vinculadas a acontecimentos traumáticos e situações de repressão. Na mesma linha de Huyssen, a autora afirma que se num sentido político, a demanda pela memória se expressa em termos de reconhecimento, responsabilidade, justiça e ética, demandam olhares que não resultam fáceis de resolver pela conflitividade política entre os coletivos e a ruptura dos laços sociais. Nestes casos, a demanda pela memória coincide com a demanda pelo respeito aos direitos humanos e o estabelecimento de ordens democráticas.
Outro assunto importante é o do tempo, retomando a Koselleck, a autora afirma que situar temporalmente a memória significa fazer referencia ao espaço da experiência no presente, ou seja, o passado presente. Muitas vezes ao longo do livro, a autora afirmará que o tempo das memórias não é linear, cronológico ou racional.
Seu livro se chama os trabalhos da memória porque ela afirma que é necessário elaborar memórias e lembranças no lugar de revivê-las. Este trabalho pode se dar em dois planos, o individual, analisado pela psicologia, no qual, citando Laplanche y Pontalis, o trabalho de “duelo implica un proceso intrasíquico, consecutivo a la pérdida de un objeto de fijación, y por médio del cual el sujeto logra desprenderse progresivamente de dicho objeto” (p. 15). Freud também afirma que esse trabalho toma tempo para esquecer e transformar os afetos e sentimentos; Ricoeur, por sua parte, afirma este tempo de duelo é libertador.
Quanto ao plano coletivo e retomando as questões de LaCapra e Todorov, Jelin afirma que o grande desafio é superar os esquecimentos e abusos políticos, tomar distância, retomar os debates e a reflexão sobre o passado, mais procurando olhar para o futuro “Esto implica um pasaje trabajoso para la subjetividad: la toma de distancia del pasado, aprender a recordar. Al mismo tiempo implica repensar la relación entre memória y política, y entre memória y justicia.” (p. 16) O livro trabalha nos dois planos, o individual, no capítulo que trata sobre o trauma, testemunho e verdade; e o plano coletivo, nos capítulos sobre as lutas políticas pela memória, o gênero nas memórias e as transmissões, heranças e aprendizagens.
Para definir do que se fala quando se fala em memória, primeiramente a autora esclarece que não se trata de memória, mas sim de memórias no plural. A continuação fala de três eixos analíticos, em primeiro lugar o sujeito que lembra e esquece. É sempre um indivíduo ou se pode falar de coletivos? Em segundo lugar, se refere aos conteúdos, o que se lembra e o que se esquece? Vivências, saberes, crenças, patrões de comportamento, sentimentos, emoções. Por último, como e quando se lembra e se esquece, o passado é ativado no presente em função de expectativas futuras, em termos das dinâmicas sociais. Este como e quando se lembrar pode ter um caráter individual ou coletivo e pode ter momentos de ativação da memória e outros de silêncio. Há também chaves de ativação da memória, como rituais, performances, onde o simbólico e o mítico ocupam um lugar privilegiado.
Em relação ao primeiro eixo da análise, a psicanálise tem se preocupado pelo outro lado da questão, o esquecimento, os buracos, os traumas, não obstante num nível mais individual que coletivo. Por outra parte, a memória pode ser pensada em termos coletivos, para tal efeito a autora retoma as teses de Halbwachs e fala que, ainda que sua proposta seja discutível, para seu estudo é interessante a noção de marco ou quadro social, no sentido de marcos ou quadros nos quais a memória é compartilhada, como a religião, a família e a classe. É interessante para ela porque desta perspectiva é possível analisar as memórias coletivas, não só como dados, mais também centrar a tensão na construção, os atores implicados nela, as lutas e as negociações pelos sentidos destes processos.
Dentro deste primeiro eixo de análise, o sujeito que lembra e esquece, é importante o assunto da identidade. A identidade como uma coisa que nos permite pensar, são parâmetros, traços de identificação individual ou coletiva, essas identidades podem estar fundadas em fatos concretos ou ser projeções, idealizações. O importante é que períodos de crise ou de ameaça, geralmente implicam em reinterpretar a memória e questionar identidades.
Em relação ao segundo eixo, relativo aos conteúdos das memórias e dos esquecimentos, as lembranças se expressam de forma narrativa, é a “manera en que el sujeto construye un sentido del pasado”. Segundo Jelin, esta construção tem duas características, de um lado, o passado cobra um sentido num enlace com o presente no fato de rememorar e esquecer; num outro, esta pergunta pelo passado é um processo subjetivo, é ativo e construído socialmente pelo diálogo e interação.
Nesta discussão da memória, o esquecimento ocupa um lugar central, é necessário para a sobrevivência do indivíduo e do grupo. Esses esquecimentos têm usos e sentidos:
1. Esquecimento definitivo que pode ser um esquecimento exitoso na medida em que tem um êxito temporal, mas se existe uma vontade de memória, pode voltar. Por outro lado, também tem aqueles esquecimentos que são produtos de uma vontade política de esquecer; neste sentido é preciso ter presente, de acordo com a autora, que toda política de memória implica uma seleção, do que se preserva e do que se esquece.
2. Como superar as dificuldades e aceder aos rastros das memórias.
3. Esquecimento evasivo, denominado assim por Ricoeur, o silêncio contrapondo ao esquecimento. Neste caso, o importante será encontrar quem queira escutar.
4. Esquecimento libertador. Pode ser analisado em duas perspectivas: Nietzsche e seu pedido por um esquecimento que permita viver, e Todorov, e seu uso exemplar da memória.
Nesta discussão sobre a memória como construção social narrativa, Jelin retoma Halbwasch quando afirma que “Es el lenguaje y las convenciones sociales asociadas a él lo que nos permite reconstruir el pasado.” (p. 34) Assim, a narração da memória tem um caráter social. Para Bourdieu, nesse discurso se expressa também um poder simbólico e uma luta para revestir de legitimidade e reconhecimento essas narrações. Que importa de tudo isto?
1. Ter ou não ter palavras para expressar o vivido. Se não se encontram os canais para expressar o evento traumático, a memória fica desarticulada.
2. Se toda a experiência está mediada e não é pura, se faz necessário repensar a suposta distância e diferenças entre os processos de lembrança e do esquecimento autobiográficos, e os processos sócio-culturais compartilhados pela mediação de mecanismos de transmissão simbólica.
3. Permitir a articulação de níveis individual e coletivo ou social da memória, a experiência é vivida subjetivamente e culturalmente compartilhada. Neste ponto, são importantes os sujeitos da memória e os veículos da memória.
Nessas perguntas de quem, como e quando, Jelin aborda o que é uma das mais interessantes questões: as lutas políticas pela memória. A autora começa este capítulo com uma questão feita por Ricoeur: “El pasado ya pasó, es algo determinado, no puede ser cambiado. El futuro por el contrario es abierto, incierto, indeterminado. Lo que puede cambiar es el sentido de ese pasado, sujeto a reinterpretaciones ancladas em la intencionalidad y en las expectativas hacia ese futuro. Ese sentido del pasado es um sentido activo dado por agentes sociales que se ubican en escenario de confrontación y lucha frente a otras interpretaciones, otros sentidos, o contra olvidos y silencios” (p. 39) A proposta da autora é estudar os processos e os atores que intervêm no trabalho de construção e formalização das memórias.
Na construção do Estado-nação latino-americano, se configurou um relato, uma história oficial na qual se estabeleceu claramente as posições dos atores e os conteúdos dos relatos. No entanto, nos momentos de democratização ou transição política esses relatos oficiais foram confrontados por outros relatos, por outras memórias que reclamaram reconhecimento e legitimidade. Não obstante, não se pode falar de uma contraposição binária, dentro de uma mesma sociedade podem se dar múltiplas leituras do passado. Isso quer dizer que desde o início dos acontecimentos estão se formando relatos e discursos que num momento dado podem entrar em disputa para se legitimar, dependendo da conjuntura política. “La cuestion de como encarar las cuentas con el pasado reciente se convirtió entonces en eje de disputas entre estrategias políticas diversas”. É bom trazer de novo Huyssen quando ele chama a atenção sobre os possíveis usos políticos da memória.
Há dois conceitos chaves utilizados por Elizabeth Jelin: veículos da memória e os agentes da memória ou empreendedores da memória.
Os veículos são todos aqueles lugares, objetos, datas, rituais que trazem a lembrança, que ativam a memória. Por sua parte, os agentes o empreendedores são sujeitos que:
“(…) se involucran personalmente en su proyecto, pero también comprometen a otros, generando participación y una tarea organizada de carácter colectivo. A diferencia de la noción de militantes de la memoria (utilizada por ejemplo por Rousso), el emprendedor es un generador de proyectos, de nuevas ideas y expresiones, de creatividad - más que de repeticiones- la noción remite también a la existencia de una organización social ligada al proyecto de memoria, que puede implicar jerarquías sociales, mecanismos de control y división de trabajo bajo el mando de los emprendedores”. (p. 18)
Agora, como estudar esses artefatos da memória e seus agentes? Segundo a proposta metodológica de Jelin, é preciso, em primeiro lugar, identificar e analisar a dinâmica social das datas e dos aniversários, daqueles momentos em que a esfera pública é ocupada pela comemoração. Em segundo lugar, identificar os objetos materiais e os lugares ligados aos fatos, monumentos, placas, praças, arquivos e outras marcas da memória, pois eles são as maneiras nas quais a memória se materializa.
A proposta de Jelin dos empreendedores da memória implica uma elaboração da memória em relação a projetos ou empreendimentos que possam significar a criação de uma memória exemplar, tal como a propõe Todorov. Aquilo subjacente à proposta é o problema central da relação entre memória e política, se refere à possibilidade de conformar uma comunidade política com regras.
Todos esses processos de memória têm implícita uma luta política entre os empreendedores da memória e seus diferentes relatos, tanto pelo conteúdo, como pelas marcas e os meios de lembrar. A memória se torna em parte do jogo de poder. Fazem-se duas perguntas: Quem é a autoridade que vai decidir quais são as formas apropriadas de lembrar? Quem encarna a verdadeira memória?


Capitulo 2 - De que falamos, quando falamos de memórias?
Jelin apresenta no princípio duas possibilidades para trabalhar a categoria memória: como ferramenta teórico-metodológica e como categoria social à que se referem ou omitem os atores sociais, seu uso (abuso ou ausências) social e político e as concepções e crenças do senso comum. Neste capítulo a autora tentará um avanço nas questões conceituais, lembrando que uma abordagem da memória significa se referir às lembranças, esquecimentos, narrativas e atos, silêncios e gestos; aos buracos e as fraturas, aos saberes e as emoções.
Voltando à Halbwachs, segundo a qual as memórias individuais sempre estão marcadas socialmente (visão do mundo, valores, necessidades sociais, etc.) e o esquecimento significa a perda destes quadros sociais, assim nunca lembramos a sós, lembramos com os outros, estamos submersos nas narrativas coletivas. “Como esos marcos son históricos y cambiantes, en realidad, toda memoria es una reconstrucción más que un recuerdo.” (p. 21). Jelin coloca a ênfase nos quadros sociais da memória mais do que na memória coletiva (conceitos de Halbwachs), pois o perigo é que a memória coletiva possa ser entendida como uma entidade própria que logo será cristalizada separada dos indivíduos. O coletivo nas memórias é o tecido de tradições e memórias individuais em dialogo e fluxo constante, que tem organização e estrutura socialmente compartilhadas. Assim Jelin afirma que “Las vivencias individuales no se transforman en experiencias con sentido sin la presencia de discursos culturales, y éstos son siempre colectivos. A su vez, la experiencia y la memoria individuales no existen en sí, sino que se manifiestan y se tornan colectivas en el acto de compartir. O sea, la experiencia individual construye comunidad en el acto narrativo compartido, en el narrar y el escuchar.” (p.37)
Este olhar nos permite passar da memória como dado para centralizá-la nos processos de construção (Pollak) e dar voz aos distintos atores sociais e as disputas de sentidos do passado em cenários diversos (isto permite a pesquisa nas memórias dominantes).
Neste ponto Jelin chama a atenção para a noção do tempo dentro dos quadros sociais da memória, onde as próprias noções de tempo e espaço são também construções sociais. Aqui entram noções como a do passado real, o tempo mítico, os rituais e as repetições dos eventos fundacionais. A repetição do tempo mítico não é a histórica, o que acontece é que acontecimentos novos se inserem nas estruturas de sentido pré-existentes.
A relação entre memória e identidade parece ser um fato indiscutível, porém convém colocar algumas reflexões: o núcleo de qualquer identidade grupal ou individual está ligado a um sentido de permanência ao longo do tempo e do espaço. Lembrar o passado mantém a identidade. Por exemplo, os períodos de crise reinterpretam a memória e questionam a própria identidade.
Como dito anteriormente, nossa vida cotidiana está preenchida de hábitos claramente marcados socialmente (Halbwachs), porém, estes hábitos podem se romper. Neste momento os afetos e os sentimentos aparecem para refletir e procurar um sentido ao acontecido. É neste momento que um fato se faz memorável (Bal). Assim o acontecimento memorável será expressado de forma narrativa: “convirtiéndose en una manera en que el sujeto construye un sentido del pasado.” Nestes relatos comunicáveis da memória identificamos duas caraterísticas:
• O passado cobra um sentido no seu vínculo com o presente, no ato de lembrar-esquecer.
• A interrogação do passado é um processo subjetivo, é ativo e construído socialmente por meio do diálogo e a interação.
Finalmente: “Toda política de conservación y de memoria, al seleccionar huellas para preservar, conservar o conmemorar, tiene implícita una voluntad de olvido. Esto incluye, por supuesto, a los propios historiadores e investigadores que eligen qué contar, qué representar o qué escribir en un relato.” (p. 30)

Abordagens importantes no livro Los Trabajos de la Memória:
• Existem três maneiras de pensar a relação história-memória: a memória como recurso para a pesquisa, o papel da pesquisa histórica no sentido de corrigir memórias e a memória com objeto de pesquisa. Estas três maneiras não se excluem, podem se sobrepor.
• A história é uma construção político-ideológica, plausível de estar a serviço de diversos poderes, e são estas diversas orientações ideológicas que vão guiar a relação entre a história e a memória, tomando em conta suas lembranças, esquecimentos, silêncios, ambiguidades e buracos. O ingresso da subjetividade da memória na construção da história significa uma postura político-ideológica.
• Segundo La Capra “la posición que defiendo propone una concepción de la historia que involucra una tensión entre la reconstrucción objetiva (no objetivista) des pasado y un intercambio dialógico con él y con otros investigadores, en el que el conocimiento no entraña solamente el procesamiento de información sino también afectos, empatía y cuestiones de valor.” (p. 67)
• O tempo das memórias não é linear, cronológico ou racional. Assim os processos históricos ligados às memórias de passados conflitivos tem momentos de maior visibilidade e outros em que aparece o esquecimento e o silêncio. O dinamismo das memórias e o ingresso de novos atores das mesmas ressignifica estas memórias e seus processos históricos.
• Existe uma relação permanente entre memória e história, assim como a memória é uma fonte decisiva para a história; a história deve questionar e provar criticamente os conteúdos das memórias.
• A narração das memórias: os testemunhos. Só existe testemunho enquanto existe um outro disposto, interessado a ouvir aquilo que está sendo narrado. “Cuando se abre el camino al diálogo, quien habla y quien escucha comienzan a nombrar, a dar sentido, a construir memorias. Pero se necesitan ambos, interacturando en un escenario compartido.” (p. 84) Segundo Pollak, “(…) los modos en que un testimonio es solicitado y producido no son ajenos al resultado que se obtiene.” Testemunho pode ser um depoimento judiciário ou policial, uma entrevista de historia oral, um exercício autobiográfico. Todas estas diferentes modalidades de expressão vão significar as diferentes formas de “tomar la palabra”.
• O testemunho é um momento de reelaboração, de afirmação e de reconhecimento da própria subjetividade, de manifestação da necessidade de voltar a se subjetivizar. Podemos dizer que o testemunho é uma tentativa de recomposição simbólica pessoal e sempre está dirigido a um outro. É um ato colaborativo. Segundo Vich e Zavala “el testimonio nos permite acceder al conflicto entre un decir posible y un imposible decir.” (p.109) “El testimonio es una especie de ‘épica de la cotidianidad’ y, como tal, su sistema narrativo no permite abstracciones. Por tanto, su política consiste en mostrar cómo lo privado se vuelve público y como - en tanto privado - se convierte en un imprescindible lugar para observar el asentamiento del poder.” (p. 111)
• Testemunha é aquele que vivenciou o acontecimento, assim como também testemunha é o sobrevivente e testemunha é o observador. O testemunho também é trasnmitido, assim surgem novas gerações que dão testemunho daquilo que não vivenciaram, com o intuito de que se reestabeleça a justiça e não volte a repressão política. Pergunta: o que acontece com os testemunhos dos “sem voz”, pensando nos povos indígenas, naqueles que falam outra língua - distinta a língua do repressor ou a língua dominante. O que acontece com testemunhos daqueles que nunca são chamados a dar a sua palavra, como as crianças? Quem, como, para que se interpretam os testemunhos, quais narrativas se fazem públicas, quais não? O Que acontece quando há uma exposição excessiva da palavra?
• Jelin dedica um capítulo ao tema do género das memórias. Ela chama a atenção para os mecanismos diversos da repressão atuando sobre as mulheres e os homens, e também para os trabalhos diferentes das memórias das mulheres e dos homens. Assim, (…) los símbolos de dolor y sufrimiento personalizados tienden a corporizarse en mujeres, mientras que los mecanismos institucionales parecen ‘pertenecer’ a los hombres.” (p. 99)
• É importante observar que a maioria de movimentos pelos direitos humanos, de procura dos “desaparecidos”, são movimentos liderados por mulheres, elas são as primeiras em denuncias a violência: mães, filhas, irmãs, avós, esposas dos desaparecidos. Embora a maioria de mortos e desaparecidos sejam homens, a repressão exerce mecanismos particulares de violência sobre as mulheres. Violentando seus corpos (torturas sexuais, estrupos, servitude sexual), violentando seu lugar na familia e na sociedade (partos feito em sequestro, sequestro dos seus filhos, desarticulação da familia e das comunidades, sequestro e morte das liderenças comunitarias, etc.), degeneração do feminino (os atributos femininos passam a ser usados para humilhar os pressos).
• As mulheres são as sobreviventes e se convertem em chefes de familias e em lideranças comunitárias, se tornando o novo alvo da repressão. Elas procuram reconstituir os laços familiares e sociais, daí se nota que a maioria dos movimentos pela “verdade” dos desaparecidos seja de cunho familiar (Madres de Plaza de Mayo). O tema de gênero, violência e memória é um vasto campo que precisa ser estudado nas suas particularidades: mulheres estudantes e inteletuais engajadas nos movimentos de guerrilha (como o caso da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai), os sequestros de mulheres grávidas que pariram em cativeiro e foram desaparecidas (dentro do Plano Cóndor, Argentina, Uruguai), a matança de líderes populares (caso do Peru), os estrupos, torturas e servitudes sexuais de mulheres indígenas, camponesas ou pobres, assim como o auto-exílio (Peru, Guatemala, Colômbia). Diversas abordagens se tecem para o trabalho destas memórias, como o gênero e a etnicidade.

III
Diálogo entre o artigo Os desafios da preservação da memória da ditadura no Brasil, de Joana D’Arc Fernandes Ferraz e Los Trabajos de la Memoria, de Eliabeth Jelin
De acordo com Jelin e Ferraz, o passado não tem um sentido fixo, mas um sentido ativo, dado por agentes sociais em disputas de interpretações. Ressaltamos que a memória é seletiva e política, sendo re-significada pelas demandas do presente. Nessa disputa de sentidos da memória, há uma memória oficial, onde os agentes estatais têm um papel e peso central. A história/memória oficial, segundo Pollak, serve para reforçar o sentimento de pertencimento, manter a coesão social e defender fronteiras simbólicas.
Jelin trabalha a idéia que nos locais onde se vivenciaram processos repressivos e, consequentemente, traumáticos, as memórias são dinâmicas, mudando ao longo do tempo dentro de uma lógica de manifestação e elaboração do trauma, das estratégias políticas de diversos atores, pelas questões levantadas pelas novas gerações e pelo “clima da época”. Como colocado anteriormente, o tempo das memórias não é linear, cronológico ou racional. A memória de um passado conflitivo tem momentos de maior visibilidade e momentos de latência, de aparente esquecimento ou silêncio. Quando novos atores ou novas circunstâncias se apresentam no cenário, o passado é re-significado e cobra um espaço público.
Ferraz propõe que a memória nacional oficial da ditadura ou memória do consenso, construída pela elite política, colocou a ditadura como “revolução democrática”, se calando quanto às arbitrariedades cometidas no passado, que é comprometedor, e consequentemente ignorou as questões de reparação moral e jurídica (o que pode ser visto em filmes, seriados, relatos, etc., onde não são revelados os nomes dos torturadores e mostradas as continuidades da luta, como a busca por restos mortais e a luta pela abertura dos arquivos). Essa memória oficial, ou do consenso, que busca hoje a paz e harmonia, não é democrática ou justa, pois não cumpre com o que é, para Jelin, a função da memória, que é mostrar um passado sem mentiras ou lacunas.
Pollak define como “memória fria” o patrimônio que valoriza a presença opressora do Estado e negligencia as lutas políticas e relações sociais. Essa memória perpetua o trauma das vítimas passadas e futuras. Segundo Ferraz, enquanto o passado não é resolvido, o trauma permanece e a sociedade continua autoritária.
A partir da redemocratização, ao serem ouvidas as vozes censuradas ou proibidas, vindas principalmente do movimento de direitos humanos (onde Jelin destaca o protagonismo das mulheres) que reivindicam reparação jurídica e moral, essa memória do consenso começou a ser abalada. A sociedade de hoje está mais aberta para falar e ouvir, existindo uma necessidade de releitura da memória nacional e de apelo para o fim do esquecimento (o que pode ser notado em filmes, teses, etc.), o que favorece a inserção na esfera pública redes de memória até então particulares e clandestinas, definido por Pollak como de “estruturas de comunicação informais”, que são essas novas memórias, não memórias frias, mas de luta, resistência, repressão e de sonhos, como a história dos militantes, as lutas revolucionárias e as torturas, que contrapõem os silêncios e os esquecimentos produzidos pelos atores sociais que imprimiram a memória oficial, e também por omissão da sociedade, que participou do golpe civil-militar.
As memórias clandestinas, segundo Pollak, quando saem do seu pequeno círculo e são compartilhadas, invadindo o espaço público, passam a ter uma função de contestação e reivindicação. Ferraz argumenta que essa memória da luta, promovida por movimentos de resistência (como o GTMN e Amigos de 68), é pedagógica, pois busca olhar para os crimes do passado para construir uma sociedade mais justa. Essa luta por justiça e memória é necessária para a superação do trauma. Esses atores sociais ou grupos de pressão “argumentam que não é possível seguir rumo à democracia sem corrigir os erros do passado”.
Jelin coloca esses agentes sociais que lutam pela memória, como empreendedores da memória - principalmente as vítimas ou afetados diretos, que tentam modificar o sentido e o conteúdo da história oficial ou dominante. Entre suas estratégias: reivindicações e reparações materiais, busca de comunidades de pertencimento, realização de rituais, comemorações, monumentos e museus. Em função dessas lutas, Ferraz destaca conquistas, como a localização de restos mortais e indenização para sobreviventes e familiares de mortos.
Para Ferraz, os principais eixos de luta se referem (considerando-se Brasil, Argentina, Chile e Uruguai): 1) à abertura dos arquivos secretos da ditadura (nenhum país fez); 2) reparação moral, que inclui o julgamento dos torturares - o que toca na questão da lei da anistia (onde só o Brasil não fez); 3) reparação jurídica; 4) apoio psicológico; 5) apoio à reconstrução à vida profissional (nenhum país fez).
Para Jelin, os lugares onde ocorreram as prisões e tortura são um ponto crucial nessa disputa por significações, onde grupos sociais que atuam como empreendedores da memória conseguiram modificar algumas de suas significações, fazendo surgir novas interpretações, mudanças nas narrativas e também novos conflitos. As vítimas de São Paulo conseguiram criar o Museu da Resistência, no antigo Deops/SP e em outros estados percebemos movimentos reivindicatórios para a musealização desses espaços, como no Rio de Janeiro (Dops) e Minas Gerais (Memorial da Anistia Política), o que demonstra como essas disputas pelas significações dos locais da tortura e repressão estão em evidência.
Para Todorov existem dois tipos de memória: a que faz “mau” uso do passado - a “literal”, e a que faz “bom” uso do passado - a exemplar. Enquanto que a memória literal se fecha em si mesma, onde existem um “dever de memória” através dos “militantes da memória”, a memória “exemplar”, é feita pelo empreendedor da memória, implica em, por um lado, superar a dor da recordação pessoal, por outro, aprender com ele, tirar do passado as lições para o presente.
Jelin procura mostrar de como ser possível a construção de uma memória exemplar, a partir das narrativas dos testemunhos que vivenciaram o trauma. O testemunho tem “um propósito político e educativo, que é transmitir experiências coletivas de luta política, assim como os horrores da repressão, tentando indicar caminhos desejáveis e marcar com força o ‘nunca mais’”. “O testemunho como construção de memórias implica multiplicidade de vozes, circulação de múltiplas ‘verdades’, também de silêncios, coisas não ditas”, esses silêncios podem vir de vazios traumáticos ou de estratégias de distanciamento do outro, respondendo somente o que outro está preparado para escutar, ou por não desejar se expor, por vergonha ou por busca da dignidade. Pollak coloca como um modo de gestão da identidade. Para Ferraz, a instituição da repressão, que inibiu falas, foi o fator preponderante na constituição desse silêncio traumático.
O sofrimento traumático pode privar a vítima de sua comunicação, impedindo o testemunho, já que, para Jelin, o traumático do acontecimento implica uma “incapacidade semiótica”. Sob o ângulo da discursividade, é preciso levar em conta a disponibilidade de marcos narrativos (ou sistemas simbólicos) existentes em uma cultura.
A partir dessa dificuldade de se expressar, Jelin destaca a importância não só do narrador, mas do outro, que escuta ativamente. Só através do diálogo é possível a superação de um trauma histórico. A ausência do outro - que pode escutar suas angústias, afirmar e reconhecer sua realidade - aniquila o relato. É importante ressaltar que esse diálogo deve ser construído sob a alteridade, ao invés da identificação. A capacidade de escuta diferenciada e atenta dos outros é uma ferramenta fundamental para uma narrativa pública que recupere a intimidade e a privacidade.
Resumindo, Ferraz mostra a importância das ações individuais para a preservação da memória da ditadura. Não é a partir da ação governamental (que até hoje não abriu os arquivos ou criou um monumento em memória das vítimas) e sim dos movimentos de resistência, definidos grupos de pressão ou empreendedores da memória, que essas memórias de luta são colocadas na esfera pública, levantando assim importantes discussões que funcionam como marcos de pressão sobre o Poder Judiciário. Essa luta ou negociação é dada entre diversos atores e grupos sociais e se move pelo reconhecimento dessas memórias de luta, com objetivo de superar o trauma, buscando a afirmação da justiça e da memória, o que implica a reparação moral e jurídica.



Os estudos da memória na Colômbia
Dentro do processo de paz com os grupos paramilitares na Colômbia se criou a “Comisión Nacional de Reparación y Reconciliación” e como parte dela o Grupo de Memória Histórica. A primeira questão sobre o quero chamar a atenção é o nome do grupo Memoria Histórica. Desde sua criação tem claro que, em primeiro lugar a memória tem um caráter político, por ser um campo de luta onde se dirimem as versões do passado em relação com o futuro que se quer construir, mas essas memórias acedem ao campo político em condições de desigualdade. Em segundo lugar, a memória histórica tem um papel fundamental nos processos de democratização em situações de conflito. Terceiro, a memória histórica não é um substituto da justiça, mais é uma forma de justiça. Quarto, que memória histórica é uma forma de reparação, um mecanismo de reconhecimento, deixam de ser vítimas para serem vítimas organizadas, vítimas cidadãs, criadores de memórias cidadãs. Como se pode deduzir, é uma memória histórica porque tenta reconstruir não só as narrativas da memória, superar os traumas ou reconhecer as vítimas, mas também tem um compromisso com a reconstrução dos fatos, com a verdade do acontecido, ainda com consequências judiciais. Como afirma seu diretor Gonzálo Sánchez: “Muchas cosas están pasando en Colombia hoy. Y una de las más importantes es que pese a las estructuras del miedo, las víctimas, la sociedad y las instituciones han comenzado a hablar. Es el tiempo de hacer memoria” (CNRR, Comisión de Memoria Histórica, 2008, p. 27).
Até agora esse Grupo tem feito duas grandes pesquisas de dois casos emblemáticos de violência na Colômbia: o massacre em Trujillo, Departamento do Valle e El Salado no departamento de Bolivar

Trujillo Valle
O município de Trujillo no Departamento do Valle, no sul ocidente colombiano tem sido lugar de uma violência múltipla e continuada entre 1988 e 1994, com um total de 342 vítimas assassinadas, desaparecimentos e deslocamentos. Numa conjunção de atores como exército, polícia, narcotraficantes, políticos locais que cometeram toda classe de ações violentas contra os habitantes de Trujillo.
Este caso ilustra uma longa e frustrante espera pela verdade, a justiça e a reparação. Não obstante, é também reflexo da incansável luta dos guardiões da memória, através de denúncias, organização dos habitantes no “Movimento de Víctimas de Crimens de Estado”. Para o grupo de Memória Histórica, esses empreendedores da memória de que fala Jelin não só promove a criação das narrativas, eles têm a tarefa de identificar, dignificar e humanizar as vítimas, deixar de ser uma comunidade de duelo para ser uma comunidade de direitos. Para eles é muito importante a condição de cidadão que deve resgatar a vitima, como sujeito de direitos: direito a justiça, direito a dignidade, direito a reparação. Este é talvez um componente político que Jelin não explora.


El Salado
O massacre do Salado, feita entre os dias 16 e 19 de fevereiro o 2000, é outro caso emblemático, mas diferente. O acontecimento é significativo na história e dinâmica do conflito armado colombiano por sua magnitude, crueldade extrema, teatralização do horror e duração dos fatos: 60 mortes em três dias. No entanto, não gerou uma condenação generalizada aos vitimários, nem solidariedade com as vítimas, nem sequer um registro duradouro do acontecimento na memória coletiva. A pergunta central da pesquisa é qual é a responsabilidade das autoridades nos fatos, qual é nosso papel como sociedade quando acontecem horrores como esse narrado, porque uma sociedade deu mais valor à narração feita pelos vitimários do que aquela feita pelas vítimas, porque a estigmatização dos habitantes do Salado e certa justificação social dos fatos: eram guerrilheiros. A investigação revela como os vitimários tiveram a possibilidade de dar sua versão dos fatos, e como as mídias de comunicação e as mesmas autoridades não deram oportunidade de falar as vítimas, minimizando o acontecido. Neste caso as vítimas não têm organização, não têm uma reclamação pelos direitos, são invisíveis para a sociedade. Por isso o compromisso do grupo em reconstruir uma verdade histórica, é dizer, a pesquisa tem que ter um sustento metodológico e de validez documental que permita narrar os acontecimentos tal como foram para que a sociedade não só reconheça o horror, sua responsabilidade pela invisibilidade, também para que as vítimas compreendam o que viveram.

As audiências públicas da CVR - Comissão da Verdade e Reconciliação no Peru
“Un país que olvida su historia está condenado a repetirla”
A frase da epígrafe se encontra na página inicial do site da CVR e traz os conceitos de esquecimento e de história, centrais no livro de Jelin. O sentido da frase é preventivo: mostra o perigo do esquecimento, como esse esquecimento pode repetir uma história que também está esquecida ou desconhecida. A repetição como uma condenação. Porém, só a partir do informe final da CVR, entregue ao governo peruano no ano 2003, a população peruana pode ser consciente da magnitude do conflito armado que assolou o país entre os anos 1980 e 2000 (o período da investigação da CVR). Nesse sentido estamos falando de uma história desconhecida ou, ainda pior, que não foi elaborada e de um esquecimento próximo ao silêncio e ao apagamento. Assim, o desafio social e político para a sociedade peruana está em construir essa história - daí a necessidade imperiosa de historizar a memória - e de gerir de forma democrática os esquecimentos, silêncios e aprendizados da memória. Podemos dizer que é um chamado para o trabalho que um grupo de empreendedores da memória (segundo Jelin): aqueles que podem propor transformações a partir da memória e não unicamente repetições.
A CVR no Peru se junta aos movimentos do “Nunca Mais” e do “Para que não se repita”, e se une à rede latino-americana de movimentos sociais pelos direitos humanos e de luta contra a repressão nas condições das nossas frágeis democracias (em trânsito para a democracia). Tanto é que um dos comissionados da CVR, Carlos Iván Degregori, é, junto com Elizabeth Jelin, um dos diretores da coleção “Memórias da Repressão”, da qual “Os trabalhos da Memória” faz parte.
As investigações da CVR no Peru abriram um novo período, o da luta política pela memória, que procura uma nova narrativa da história nacional e a revisão da memória oficial para o processo diverso, conflitivo e reconciliador das memórias que contribuíram para esta nova história. Este é um processo complexo que significa uma revisão total da história nacional, a emergência de novas ferramentas metodológicas e a ação de diversas disciplinas do conhecimento para as re-elaborações e as re-significações da sociedade peruana, numa complexa visão espaço-temporal. Assim, é fundamental mencionar que o conflito armado interno peruano aconteceu ao longo de períodos de governos democráticos que empregaram a repressão e a violência tanto quanto os partidos políticos subversivos. Tanto Sendero Luminoso quanto o Estado peruano são responsáveis pelo genocídio acontecido no Peru. A CVR conclui também demonstrando a ineficácia, a inoperância, o descaso do Estado peruano na situação de emergência.
Apresentarei um panorama das dimensões do conflito armado interno no Peru: Este foi o episódio de violência mais prolongado e intenso (1980-2000) da história republicana do país e revelou as brechas e desencontros profundos e doloridos da sociedade peruana (o abandono e o desconhecimento da humanidade e dignidade de um contingente enorme de peruanos e peruanas, os indígenas andinos e amazônicos). A quantidade de vitimas se estima em 69.000 pessoas aproximadamente e uma grande porcentagem - mais da metade - das vitimas são indígenas e camponeses andinos e amazônicos. Isso demonstra a relação entre a situação de pobreza e exclusão e a probabilidade de ser vítima da violência, mostrando a grande desigualdade étnico-cultural que ainda prevalece no Peru e o profundo racismo que marca a sociedade peruana. Outra mostra disto é que a destruição se concentrou no território geográfico dos Andes e da Amazônia, com especial concentração na região sul andina e especificamente na área rural.
A dimensão étnica e cultural, assim como a dimensão do gênero, foi visível quando se instalaram as audiências públicas da CVR. O âmbito étnico e cultural é central para analisar o conflito interno peruano, justamente o âmbito que Jelin não trata no seu livro (na introdução explica que não o fará). Porém, sua aproximação metodológica às questões de gênero e violência, sua proposta de empreendedores da memória, sua preocupação com os profissionais da escuta e com a re-elaboração das testemunhas da violência no contexto do trauma são propostas teóricas que dialogam com o caso peruano, embora tenha as suas especificidades.
Retomo o momento em que Jelin fala das testemunhas dos sem voz e as controvérsias que estes textos levantam para a construção das memórias e da história. Para exemplificar, trago o momento concreto das audiências públicas da CVR, acontecidas em diversos lugares do Peru. No caso peruano, a violência se concentrou sobre aqueles que não só são os mais pobres e excluídos, mas também aqueles que não falavam a mesma língua dos seus carrascos, os indígenas. A língua, o discurso como tema central do relato da memória, um discurso em outra língua, uma língua desvalorizada e discriminada, assim como aquele que a fala. No momento da coleta dos testemunhos das vítimas, 75% eram quíchua falantes ou falavam uma língua nativa amazônica. O que acontece quando a língua do ouvinte não é mesma que a da vitima? Assim as testemunhas da CVR se constituem, não só em performances da memória, em relatos da mesma, e sim também num enorme chamado para a reconfiguração política, social e econômica do Peru. As audiências da CVR se converteram em espaços da fala, da fala legítima em línguas nativas, da elaboração do relato, da rememoração, do esquecimento, dos silêncios, das fraturas, da dor, da sanção, em suma, espaços para a restituição da dignidade, para a procura da verdade e da memória que neste caso - parafraseando a Yerushalmi - se identificam com a justiça. “La oportunidad de rendir testimonio frente al país es un acto de dignificación y sanación para las víctimas que aparecen en la audiencia publica y para aquellas personas que pueden identificarse con los casos presentados. La Comisión busca que las víctimas enriquezcan la investigación con su verdad personal, con su interpretación de los hechos y sus esperanzas de justicia, reparación y prevención. Asimismo, el país se solidariza y reconoce la dignidad de las víctimas, por tanto tiempo negada” (texto extraído do site: http://www.cverdad.org.pe).
Para os interessados, recomendo o vídeo que se aproxima ao tratamento do gênero e violência no conflito armado interno peruano. Mujeres y violencia:
http://www.youtube.com/watch?v=4CnbZkCwQ24&feature=related

Bibliografía Principal:
Jelin, Elizabeth. Los Trabajos de la memoria, Madrid, siglo XXI, 2002.
Ferraz, Joana D’Arc Fernández. “Os Desafios da Preservação da Memoria da Ditadura no Brasil”, in Museus e Patrimônio: vozes polifônicas (no prelo)